Ana Margarida Arruda Furtado Rosemberg (*)
Há dias o frio não dava trégua em Sampa. O cruzamento da Ipiranga com a São João regurgitava de gente naquele quase fim de tarde, do dia 27 de maio de 2005. O vento frio chicoteava nossas faces. Eu, bem agasalhada, carregava uma mochila com roupas, sapatos, jóias e maquiagem. Você levava nas costas sua câmera fotográfica, além de um ventilador em uma das mãos.Entramos rapidamente no prédio belle époque e fomos direto ao 7º andar. Ao entrarmos no estúdio, o calor nos envolveu como em um abraço carinhoso. Sentei-me no confortável sofá e relaxei por alguns minutos. Apreciei as artísticas fotos que cobriam as paredes e todo o estúdio tão bem arrumado. Senti orgulho de minha primogênita.
Enquanto você preparava os apetrechos para mais uma sessão de fotos eu desmanchava a minha mochila. Fui, logo em seguida, calçando as meias finas que aos poucos foram cobrindo minhas pernas e me protegendo do frio. Vesti o meu blazer cor de rosa e calcei meu par de sapatos prateados de salto alto.
Sentada em frente à janela fui sendo maquiada, por você, ao som dos Beatles, que baixinho invadia o ambiente. Ao ouvir Girl fui tragada em uma viagem vertiginosa e voltei ao passado longínquo. A melodia e a letra, Is there anybody going to listen to my story. All about the girl who came to stay? Ah, girl, girl, girl, me fez reviver momentos passados ao seu lado e, de repente, nosso tempo de mãe e filha se fez presente.
Maquiada e arrumada entreguei-me a você, fotógrafa, minha filha, que com técnica e competência me via através de suas lentes e captava aqueles momentos preciosos. Momentos de perfeita comunhão entre mãe e filha.
O casaco de pele de lontra aqueceu-me por instantes e ao ouvir a melodia de Eleanor Rigby, Ah, look at all the lonely people. Eleanor Rigby, picks up the nic..., voltei novamente ao passado e revivi o momento de seu nascimento. A emoção que você me proporcionou ao vir ao mundo, sem dúvida, a maior que eu já senti em toda a minha vida, invadiu, novamente, a minha alma. Mal pude acreditar que o tempo havia passado e que estava diante de uma profissional que se agigantava à medida que o trabalho ia sendo desenvolvido.
E, assim, ao som dos Beatles, você me fotografou em pé, sentada, deitada no sofá, recostada à porta com várias roupas e casacos diferentes.
Quando, Lucy in the sky with diamonds invadiu o estúdio lembrei-me da história dos primeiros humanos e de Lucy que foi encontrada na África, mais precisamente em Hadar, na Etiópia, em 1974, onde viveu há 3.2 milhões de anos. O esqueleto lá encontrado, que foi atribuído a uma fêmea Australopithecus afarensis, era bípede e recebeu o nome de Lucy em homenagem à canção feita pelos Beatles. A história tem dessas coisas.
Cansadas, mas felizes, deixamos o estúdio quando o manto da noite já cobria Sampa. Em sua câmera fotográfica você levava, eternizados, aqueles preciosos instantes e o meu amor por você.
(*) Ana Margarida é médica pneumologista e historiadora. Com esta crônica, "Fim de Tarde", obteve o 2.º lugar em concurso literário promovido pela Sobrames-CE e Unicred, cuja entrega dos prêmios aconteceu ontem (28/10), juntamente com o lançamento do livro "Passeatas Literárias", 28.ª antologia da Sobrames-CE.