DRIBLANDO A CENSURA DO FAMILIAR

Transcrito do Blog do Marcelo Gurgel (*)
Entre 1936 e 1971, o Cine Familiar funcionou, sem interrupção, no Otávio Bonfim, agregado à quadra do Convento de Nossa Senhora das Dores, da Ordem dos Franciscanos Menores, situado em Fortaleza.
Os frades, com o propósito de zelar pela conduta moral de seus fiéis, e também clientes do seu cinema, efetuavam uma triagem dos filmes que poderiam ser ofertados, e, inclusive, dentre os selecionados para projeção, antecipadamente, cuidavam de ver as películas, autorizando cortes de cenas julgadas ofensivas à pudicícia, o que incluía o beijo na boca, até de casais românticos; cenas de sexo, explícitas ou não, sofriam a ação da tesoura, que truncava a sequência, de forma claramente perceptível pela assistência.
Narra-se, até mesmo, um episódio em que um frade, que acompanhava a exibição de um filme, notou que uma cena, cuja sentença capital fora expedida, escapara do corte. Ele, de pronto, sobe à sala de projeção, e interrompe, com a mão, a transmissão do trecho censurado. A atitude dele suprimiu apenas as imagens, enquanto as falas e os sons prosseguiram, o que despertou o protesto da assistência, manifesto em uma estrepitosa vaia.
Uma traquinagem dos pirralhos era bisbilhotar parcela do lixo do convento, pois os frades colocavam-no em um buraco, e ateavam fogo, como forma de destino final das partes censuradas dos filmes. Ao fuçar as cinzas, os aventureiros juvenis encontravam películas queimadas, e, por vezes, captavam pedaços não carbonizados, conformando pequenos troféus, que aguçavam a curiosidade da meninada.
Para os que tinham um pouco mais de recursos, essas preciosidades eram colocadas em uma cartela e apreciadas em um visor de slides; a maioria dos adolescentes, no entanto, considerando que “quem não tem cão, caça como gato”, montava um apetrecho, para visualização dos slides, recorrendo a uma caixa de madeira, em que se introduzia uma lâmpada incandescente, da qual eram removidos o bulbo e os filamentos, cheia de água limpa, deixando-a bem transparente. A caixa funcionava como uma câmara escura, e por meio de um orifício no exterior, à altura da lâmpada, os diapositivos podiam ser vistos ampliados e com maior nitidez.
Essas poucas relíquias, salvas do fogo, como se fossem as sarças ardentes não consumíveis, descritas no Êxodo, eram como a fênix, nascendo das cinzas, para corar as faces de garotos entrados na puberdade, despertando-os para os pecados da carne, e atiçando a vontade de conjugar o verbo conhecer, no sentido bíblico.
(*) Marcelo Gurgel Carlos da Silva, nascido e criado na Paróquia das Dores. É médico, economista, professor universitário, polímata e membro da Sobrames, ACM, ACEMES e Instituto do Ceará, entre outras entidades. 
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LINKS para outras notas publicadas em "Linha do Tempo"sobre o Cine Familiar:
O COMEÇO DO CINE FAMILIAR
O FIM DO CINE FAMILIAR
O MURO DAS FORNICAÇÕES - 1
O MURO DAS FORNICAÇÕES - 2
ENSAIOS SOBRE O CINE FAMILIAR
O CINEMA DE ARTE NO FAMILIAR

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