ESTIRÃO DO EQUADOR

Havia a presença de um oficial médico em cada pelotão de fronteira no Solimões. Quando um destes pelotões (eram quatro), por qualquer razão, ficava sem o seu esculápio, cabia ao Hospital de Guarnição de Tabatinga (HGuT), sediado em Benjamin Constant, indicar o profissional substituto.
Tínhamos uma escala no hospital para atender essas necessidades. Em geral, designava-se um médico R2 para assistir o pelotão por um tempo mínimo de 15 dias.
Ao passar a direção do HGuT para o Dr. Cunha, um major médico transferido de Belém, daí em diante fui incluído na escala. Em pouco tempo, lá estava eu em Estirão do Equador.
Situado à margem direita do Javari, num trecho em que o rio é um retão, o pelotão não tinha sequer um aldeamento civil ao redor. Eram as instalações militares, a selva, o rio e, do outro lado, o Peru. Comandava o efetivo militar local um primeiro-tenente de infantaria.
Ao sermos apresentados, ele e eu sabíamos das nossas posições na hierarquia militar. No confronto, eu era mais antigo, e antiguidade é posto, como se diz na caserna. Não era à toa que existia o Almanaque do Exército para dirimir eventuais impasses.
Após me informar sobre a hora da formatura matinal, o comandante do pelotão me indagou se eu pretendia comparecer. Respondi que não. Ficasse ele dispensado de apresentar-me a tropa em forma nas alvoradas. Eu  sairia do café diretamente do alojamento para a enfermaria do pelotão, onde estaria à disposição dos militares que alegassem doenças.
A enfermaria, o refeitório e o alojamento constituíram o meu espaço em Estirão do Equador naqueles 15 dias. Felizmente, todas as portas e janelas das citadas instalações eram teladas, além disso eu passava o Repelex no corpo. O que aprendi ser necessário, pois os insetos hematófagos não davam trégua. Naquelas bandas, o pium (de hábitos diurnos) passava o serviço para o carapanã (de costumes noturnos). (1)
O rancho, meu Deus, era à base de enlatados. O que acontecia com menor frequência em Benjamin Constant, onde aparecia um tambaqui fresco no almoço e, à noite, podíamos ir comer um churrasco no restaurante do Magalhães. Isso para não falar como as cozinheiras do hospital sabiam disfarçar a origem industrial de um fiambre.
Aproveitei o período no Estirão para realizar uma arrumação completa dos medicamentos nas prateleiras da enfermaria. A fim de facilitar a dispensação a quem me procurasse no consultório, o que quase não aconteceu.
Chumbo miúdo
De volta a Benjamin Constant, tive uma reunião difícil com o diretor do hospital. Ele tomara 
conhecimento da existência de um grande estoque de "Pulmocilin" na farmácia hospitalar. E sugeria que eu, na qualidade de médico pneumologista, não só prescrevesse o produto como também encorajasse o corpo clínico a fazer o mesmo. Fiz ponderações a respeito.
No ano anterior, o grande (na cordialidade e no tamanho) Dr. Antônio Marques, meu chefe no Pavilhão de Isolamento do Hospital Central do Exército, casualmente elogiou as propriedades desse produto farmacêutico, chamando-o carinhosamente de "chumbo miúdo".
O que me levava a não aceitar o tal "Pulmocilin"? Sua composição e dosagens. Uma injeção continha duas penicilinas (G potássica + G procaína); estreptomicina; antígenos bacterianos polivalentes etc. etc. etc. De fato, fazia jus ao apelido.
Tempos depois, em 1996, "Pulmocilin" (2) teve o registro suspenso. Constou do parecer em seu desfavor: "As especialidades farmacêuticas para uso oral e parenteral de efeito sistêmico contendo associações numa só formulação de antimicrobianos entre si e/ou outras substâncias medicamentosas são cientificamente injustificáveis, devendo ser retiradas do comércio e proibida sua fabricação."
Ressalte-se que, à época em que isso aconteceu, "Pulmocilin" até vinha apresentando uma composição mais enxuta.

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