TIO RAIMUNDINHO

Se cada ser humano é único, meu tio-avô Raimundinho foi o mais único de todos. Solteirão e residindo no Sítio Catolé, em Senador Pompeu, com a irmã Olímpia e a preta Ventura, que fazia as comidas da casa num velho fogão a lenha.
Toda manhã, o miúdo administrador da propriedade baixava as gaiolas que estavam penduradas no alpendre de casa. Limpava-as dos dejetos dos passarinhos e renovava o alpiste e a água de beber, e tornava a pendurá-las.
Barbeava-se com um canivete que ele amolava numa pedra lisa. Abria um baú onde guardava sapotis para separar os que já tinham amadurecido. E punha um chapéu meio amorfo na cabeça para ir ver as coisas do sítio.
Uma vez, segui-o por um bom tempo (sem que ele me visse) em sua caminhada. Ele andava apressadamente como se fosse um personagem do tempo do cinema mudo. Falando com si próprio e gesticulando sem parar.
Tio Raimundinho tinha três manias: falar sozinho, cuspir com grande frequência e coçar o nariz (que vinha ficando cada vez maior).
Mas o falatório dele era só durante o período diurno. Ao anoitecer, depois que acendia o lampião alimentado a querosene (a casa não tinha energia elétrica), ele emudecia completamente.
E ficávamos no terraço à espera de uma visita importante: o vento Aracati.
Esperando o buliçoso visitante da noite, ele não participava mais das conversas. Nem para opinar sobre o que uma cobra acabara de pegar (teria sido um caçote?) atrás de umas pedras.
Ele era o caçula dos sete filhos de José Tristão Gurgel do Amaral e Maria Gurgel Valente, que haviam gerado sete filhos.
No Sítio Catolé, existia - trancada em seu quarto a cadeado - uma bicicleta de fabricação estrangeira. Eu é que não me atrevia a tomá-la emprestada para ir à cidade. Ela pertencia a Raimundinho, um solteirão cheio de manias e ciumento de seus objetos pessoais. E, para o meu tio, aquela bicicleta era "a joia principal da Coroa". Corria inclusive a história de que ele, quando ia à cidade, não pedalava o veículo por todo o trajeto. Bastava se deparar com um pequeno aclive, que ele então desmontava da bicicleta e passava a empurrá-la. E não era por falta de condicionamento físico, não. Era para não forçar a catraca.
Tio Raimundinho vinha periodicamente a Fortaleza para cuidar da saúde. Na capital, sua primeira providência era visitar o irmão José Gurgel. Era deste abonado irmão que vinha o adjutório para os gastos que teria com médicos, exames e remédios (embora no final sobrasse algum).
Acompanhei-o numa operação da próstata e em algumas consultas médicas. Numa destas, ao cardiologista que lhe fez a clássica pergunta sobre o que estava sentindo, ele respondeu espantado: "Eu? Eu não sinto nada."
Um dia, tio Raimundinho não compareceu à mesa para o café matinal. Abriram a porta de seu quarto e o encontraram em pé, apoiado em uma cômoda. Mas não estava vivo.
Morreu como morrem os bravos.
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Tia Olímpia e Ventura
Tia Olímpia organizava a casa. Gostava de rezar e de ler um livro de devoção. E, quando havia pescaria no açude velho, era quem conferia a partilha dos peixes.
Muito doente, tia Olímpia veio a Fortaleza. Levei-a a uma consulta médica na Faculdade de Medicina e depois a internei no Hospital Geral de Fortaleza. Ao visitá-la, choramingou e, talvez pressentindo a morte próxima, suplicou-me para que eu a tirasse do hospital. Não a atendi. Achei que, com a boa assistência prestada no hospital, ela teria chance de sobreviver. Não aconteceu.
Ventura, o sorriso largo, era nossa tia Nastácia - sem crendices e esconjuros. Tinha a doçura dos doces que fazia. E custa a crer que ela tivesse o poder de vida e morte sobre as pequenas criaturas do Sítio Catolé.

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