O BURACO DO REITOR

Carlos José Holanda Gurgel
Acredito que todo aluno da Universidade Federal do Ceará das últimas três décadas conheceu o Buraco do Reitor. Se não frequentou, ao menos de nome e de fama ouviu falar desse boteco. Se o estudante era "enturmado" e gostava de beber uma cachacinha no final das aulas, com certeza conheceu o Buraco do Reitor. É um daqueles lugares que surgem sem que ninguém possa explica como pode um local sem qualquer graça ser tão conhecido e frequentado.
Tem tudo para não ser nem ao menos lembrado. Fica numa ruazinha transversal, entre duas grandes avenidas quase no centro da cidade (Av. da Universidade e Av. Carapinima). O prédio da mercearia, ou melhor, da bodega do “Seu Manel” é velho, mal conservado e sem a mínima estrutura para abrigar um bar. Pois o Buraco do Reitor fica numa pequena divisão do imóvel, espremido entre a mercearia do seu Manel e uma residência. São duas portas e um balcão de cimento e uma velha prateleira de madeira quase caindo e com umas poucas garrafas de bebida, a maioria cachaça. Cadeiras apenas umas três, reservadas para os frequentadores mais graduados, no caso os que bebem diariamente e em grande quantidade. No mais, apenas cadeiras improvisadas com caixotes ou os chamados tamboretes. A grande maioria fica mesmo é em pé no balcão ou encostado nas paredes, pois o espaço entre o balcão e as estreitas portas da rua é mínimo. Quem desejar alguma privacidade pode ficar na parte dos fundos, em uma pequena divisão atrás das prateleiras. Mas a maioria não interessa ficar isolada nos fundos pois além de perder a conversa e as piadas o reservado fica numa parte escura, úmida e próximo do mictório improvisado e mal-cheiroso. O bom mesmo é beber ao pé do balcão e ficar circulando entre os biriteiros frequentadores.
A fama do local é mesmo inexplicável e o nome deve-se particularmente à sua proximidade do prédio da Reitoria e do campus universitário da UFC. Era no passado uma das poucas mercearias que vendia pinga e tira-gosto na área e ficava escondido num beco de pouco trânsito de pedestres e de carros. A discrição era seu maior atrativo, já que não ficava bem para a imagem dos futuros doutores serem vistos bebendo cachaça em botequim de esquina. Com a mudança de parte da Universidade para o novo Campus do Pici a maioria da clientela de estudantes sumiu. O acelerado crescimento da cidade e as mudanças culturais contribuíram para reduzir a frequência do local. Seu atual proprietário é o Andrade, uma figura impagável. Baixinho, cara fechada e não gosta de dar um bom-dia e não tem nenhuma delicadeza com os clientes. No que pese a sua falta de trato com os fregueses, é respeitado e reverenciado por todos, em especial pelos clientes mais assíduos e chegados ao copo, os chamados "papudinhos". O que diferencia e o que mais chama atenção no Buraco do Reitor é o elevado nível social e cultural dos seus fiéis frequentadores, considerando tratar-se de uma minúscula bodega cravada num bequinho estreito e sem nenhum atrativo. Até mesmo para estacionar o carro no local é complicado. Bebericando no boteco podem ser encontrados médicos, engenheiros, advogados, professores da UFC, funcionários públicos graduados e até militares de folga. Também é reduto de aposentados, pequenos comerciantes locais e vendedores. Uma clientela eclética e que mistura sem qualquer separação ou discriminação todas as classes sociais e profissionais. Uma única restrição: mulheres não frequentam o Buraco. Um destaque: a grande maioria dos fregueses se conhece e o tratamento, como não poderia deixar de ser, é por apelidos. Alguns hilários, outros bizarros e sem explicação, contudo sem nenhuma ofensa ou sentido pejorativo. Pateta, Jabão (meu primo), Coró, Moi de Chifre, Filé de Borboleta, são alguns dos apelidos dos fregueses mais conhecidos. Qualquer insinuação de preconceito ou de humilhação de algum cliente, em especial dos assíduos e fieis "papudinhos", será prontamente rebatida e o autor convidado a se retirar.
O espaço é totalmente democrático e festivo. Discute-se de tudo, prevalecendo logicamente a política e o futebol. Mas o grande mote são os casos amorosos, as conquistas e particularmente as traições. Nesse ponto é onde surgem as melhores piadas e as maiores discussões. Amores, traições, adultérios e tudo que são fatos e histórias envolvendo o tema estão sempre em evidência e é fonte inesgotável de piadas e gozações. Masculinidade, impotência e desempenho sexual completam a pauta. Todos são envolvidos nas histórias e brincadeiras, porém sempre de maneira cômica e sem ofensas. Às vezes, os presentes elegem um pra "Cristo" e tome piada e gozação em cima do pobre coitado. As discussões se acirram, o tom de voz se eleva, entretanto no final termina tudo em gargalhadas e muita bebida. Um fato pitoresco e que chama muito atenção é a maneira original como o proprietário acompanha as doses de bebida servida. Ao invés da tradicional caderneta ou livro, as doses são anotadas por traços na madeira das prateleiras ou até no balcão
com um pedaço de giz. Somente os clientes vip possuem anotações da conta em pedacinhos de papel que ficam literalmente pendurados em um pegador coberto de ferrugem e na vista de todos. Ter crédito no Buraco do Reitor não é para qualquer um e ficar "na pendura" é motivo de orgulho. O variado tira-gosto, que sempre vem de fora, pois o Buraco não tem cozinha, é uma atração à parte. Não pela qualidade, mas pela maneira como é generosamente compartilhado. Pode ser uma simples laranja ou mesmo um limão cortado em pedaços, algumas siriguelas, um bife trinchado ou um frango à passarinha.
Tudo é colocado em cima do balcão e todos os biriteiros podem se servir diretamente. Com as mãos, com palitinhos e até com garfos, qualquer um pode beliscar o tira-gosto. E o melhor, quase sempre apenas um dos presentes patrocina espontaneamente o tira-gosto.
Outro fato pitoresco do local é o encontro anual dos clientes mais assíduos, os imperdíveis EBAN - Encontro Anual dos Biriteiros do Andrade, promovido pelos fieis frequentadores e que já se encontra na sua trigésima edição. O evento, um grande almoço, é organizado pelos fiéis clientes e é realizado em algum restaurante ou churrascaria da cidade. Participa do encontro quase sempre o mesmo grupo e toda despesa é “rachada” entre os participantes. A reunião é toda fotografada e as fotos dos encontros são reveladas e circulam meses entre os membros dessa original confraria. Um grande pôster com a melhor foto dos participantes é confeccionado e fixado nas velhas paredes do Buraco. Eu estou lá, na foto do XXI EBAN realizado em dezembro de 2001, para a posteridade. Por conta dessa longa tradição, uma das brincadeiras do local é acompanhar pelas fotos os companheiros que já “partiram” e tentar adivinhar quem será o próximo. Pode até parecer macabro ou “de mau gosto”, mas até a morte gloriosa dos “papudinhos” é motivo de piadas e muita gozação. Toda vez que passo nas proximidades me recordo das brincadeiras e de algumas das impagáveis figuras que circulam no local.
Somente quem já tomou umas e outras no Buraco do Reitor consegue entender como um local tão simples e modesto pode atrair tão seleta clientela.

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