Na visita que fiz ao Museu Municipal de Uberlândia este objeto em exposição me prendeu a atenção por alguns minutos. Tratava-se de uma caneca de flandres com dentes nas bordas. Para que, diabos, serviriam aqueles dentes, por sinal bem pontiagudos, num utensílio doméstico em geral utilizado para matar a sede de alguém. Uma placa por perto dava toda a explicação. Aquela caneca era para ser usada apenas para tirar a água de um pote, quando precisava transferi-la para uma quartinha, por exemplo. Quem quisesse beber daquela água (boa e fresca do pote de barro) sem ferir os lábios que fosse apanhar outra caneca para esse fim.
Como o púcaro, por exemplo. O púcaro era uma caneca de alça comprida, tipo concha, para tirar água do pote. Uma modalidade de caneca menos agressiva, por assim dizer.
Procurei na internet alguma imagem de caneca dentada para ilustrar esta nota, mas em vão. De maneira que lanço mão de uma foto de péssima qualidade que eu tirei na ocasião.
Para finalizar, transcrevo do site Malagueta um
artigo de Raul Lody, que é antropólogo, museólogo, pesquisador na área de alimentação com diversos livros publicados e, entre outras atividades, idealizador do Museu de Gastronomia Baiana.
Água de pote, água de beber
A boa água é essencialmente limpa, e quando fresca melhor ainda. São muitos os imaginários sobre a água, e a esses imaginários integram-se os cenários culturais e sociais que ritualizam esse tão precioso líquido.
Água de pote é uma categoria regional, uma tipologia de "lugar" para a água na casa. É a água guardada em potes de barro com várias características estéticas. Geralmente um pote de barro pode comportar de dez a vinte litros de água.
Além de ser um utensílio, o pote é também um objeto fundamental por preservar a água de beber; ele exibe e comunica: "temos água, água boa porque está no pote".
Quase sempre os potes têm tampas de madeira que são feitas especialmente para o uso doméstico. Ainda, é comum que a boca do pote esteja protegida por uma toalha de pano, pano alvíssimo, como se atestasse uma qualidade de limpeza, assim, a água ali guardada é tão limpa, tão pura, quanto a brancura do pano.
Normalmente, o pote está na cozinha ou, como ocorre em muitas casas do Nordeste, ou em ambiente único da casa. O pote quase sempre, nesse contexto, ocupa um tipo de mobília chamada de banca de pote, que é "entronizado" com destaque na casa.
Geralmente no entorno do pote estão às fotografias da família, os quadros de santos, ou outras informações visuais importantes que são concentradas e exibidas próximas ao espaço da água; assim, como os copos, as canecas, as cuias, e as meias cabaças, que são para se beber a água, e também os utensílios para se retirar a água dos recipientes.
Vê-se o aproveitamento do coco seco para se fazer o "coco d’água" – tipo de caneca especial para se retirar a água do pote.
Há outro tipo de utensílio para se retirar água do pote que é feito de flandres, e apresenta as bordas dentadas, justamente para evitar que se coloque na boca, e assim se mantém a água limpa e boa para o consumo.
Sem dúvida, o pote participa do processo de decantação das impurezas da água, pois as águas chegam de muitos e diferentes lugares.
O pote confere à água odor e sabor especial que vem do barro. Essa água é comparada à “água de quartinha”, que é outro tipo de recipiente de barro, só que de uso individual, para conter e servir água.
Há a tradição de se dizer que: "água de quartinha e água de pote são mais gostosas". Atribui-se por isso uma qualidade especial a esse tipo de armazenagem.
Esses recipientes mostram as possibilidades de preservação da pureza desse tão preciosos líquido para o consumo humano. Esse é um processo tradicional de filtragem. Como ainda acontecem com os tradicionais filtros de barro, alguns artesanais e outros industrializados.
Beber água de pote é um componente da construção do paladar, é a inclusão de um novo sabor que também está na comida preparada com esta água de sabor especial e peculiar.
O pote na maioria dos casos é a única opção de se ter água "potável" em casa. São milhares de casas no Nordeste, na região amazônica, e em outras regiões que utilizam esse utensílio como sendo a única maneira possível de acondicionar água.
A água de pote é um forte retrato da vida de milhares de brasileiros que ainda recorrem a esse costume para se ter certa qualidade na água que é destinada ao consumo na casa. Água para se beber e para se fazer comida.
Em outros cenários é crescente o cuidado gastronômico no consumo da água, inclusive numa valorização que requer até os serviços de um "sommelier" especializado para água.