MORADAS E VIZINHOS

As residências onde fomos criados pelos nossos pais situaram-se no bairro Otávio Bonfim.
Um caso peculiar o nome desse bairro, assim chamado por causa da estação Otávio Bonfim, da Rede Viação Cearense. A primeira parada do trem que, partindo da estação João Felipe, no centro de Fortaleza, fazia a linha para o Crato. Um dia, as autoridades municipais trocaram a designação do bairro para Farias Brito. E, com isso, subestimaram a inércia mnemônica da população, pois esse nome – oficial – simplesmente não “pegou”. É como Otávio Bonfim que, até hoje, o fortalezense identifica o bairro (e é como aqui o chamarei).
Era um bairro de natureza residencial, quase central. Muito procurado, nos anos 40 e décadas subseqüentes, pelas pessoas da classe média de Fortaleza com o objetivo de fixar residência. Instado a relacionar quais seriam, naquela época, as principais referências do bairro eu apontaria: a Estação Ferroviária Otávio Bonfim (é claro); a Igreja de Nossa Senhora das Dores e o Cine Familiar (administrado pelos frades franciscanos); a Usina Ceará (fábrica Siqueira Gurgel); o Mercado São Sebastião; e, em seu trecho inicial, a Avenida Bezerra de Menezes.
Foi nesse bairro que, em 1946, o jovem Luiz Carlos da Silva, então solteiro e estudante de Direito, alugou um imóvel de propriedade da Sra. Celeste Gurgel. Uma casa simples, com a fachada voltada para o poente, situada na Rua Justiniano de Serpa, nº. 53. A casa também ficava na Praça Almirante Tamandaré (Farias Brito, atualmente), a praça principal do bairro Otávio Bonfim, por corresponder a citada rua, em seu primeiro quarteirão, a um dos lados desse logradouro.
Inicialmente, alugou Luiz a casa para instalar uma escola. O Instituto Padre Anchieta, que viria a prestar relevantes serviços educacionais às famílias do Otávio Bonfim e bairros adjacentes. Nos primeiros tempos, a instituição contou com a colaboração de Elda Gurgel Coelho. A futura esposa de Luiz era ainda uma estudante do Colégio Santa Isabel, quando passou a integrar o quadro de professores do Instituto Padre Anchieta. E foi, nessa situação de aluna e professora, que iniciou uma relação de namoro com ele.
Em 25 de agosto de 1947, Luiz e Elda se casaram. E o casal foi morar no imóvel em que já funcionava a escola, adaptado em sua parte dos fundos para se tornar o lar da família Gurgel Carlos. Onde fomos aportando: eu (citando-me em primeiro lugar por ser o primogênito), Lúcia (falecida no segundo ano de vida), Marta, Márcia, Marcelo, Sérgio, Meuris e os gêmeos Germano e Luciano.
Era uma casa estreita, porém comprida, com quintal e água puxada por cata-vento. Nossos vizinhos, em casas de paredes-meias com a que morávamos, eram: à direita, Solon Acioli (vendedor da Siqueira Gurgel) com a esposa Nilda; à esquerda, Raul (gerente do Cine Diogo) com a esposa Anita. Em outras casas do quarteirão, residiam as famílias de Dr. Júlio Macedo (dentista), Dr. Luiz Macedo (também dentista e que mantinha consultório no mesmo endereço), Aglaís (funcionária dos Correios), Fernando Gurgel (vendedor da Siqueira Gurgel e futuro proprietário da Mecesa), Tia Dulce (com os filhos Flávio e Fernanda, irmãos do já citado Fernando Gurgel), Vital Félix (líder sindical) e Júlio Brígido, dentre outras.
Em 1958, o Instituto Padre Anchieta já havia cerrado as portas, mas, para abrigar uma família cada vez mais numerosa, a casa da Rua Justiniano de Serpa vinha-se mostrando pequena. Por conta disso, algum tempo antes, Luiz havia adquirido um terreno na Rua Domingos Olímpio, nº. 2.309, onde começara a construir uma casa. Em 6 de janeiro daquele ano, estando concluída a obra, mudamo-nos para lá. Ficava a uns três quarteirões do endereço anterior.
A nova casa apresentava um maior número de cômodos, com estes mais espaçosos; tinha jardim, áreas livres laterais e quintal. Afiançava a solidez do imóvel recém-construído as suas paredes externas dobradas. Contudo, a casa fora planejada e construída sem garagem. Talvez por considerar Luiz, naqueles tempos difíceis, ser uma hipótese remota a de possuir um carro. No entanto, logo pôde comprar o seu primeiro veículo, um jipe usado, o qual, por não ter como o guardar na nova residência, era conduzido à noite para “dormir” no Posto Liberdade, que ficava nas proximidades do endereço anterior. Adiante, esse problema foi resolvido com a construção de uma rampa da calçada até a varanda da casa.
Quanto ao imóvel alugado da Justiniano de Serpa, não foi logo devolvido à proprietária. Por algum tempo, Luiz, que era abstêmio, o utilizou como depósito de um negócio com aguardente. Lembro que adquiria o produto a granel de destilarias em Acarape, aonde costumava viajar por outro motivo, o de atender a sua clientela jurídica. Em Fortaleza, era a aguardente engarrafada e, com os nomes de “Uiscana” e “Esportiva”, comercializada nos bares e mercearias desta cidade. Alguma vez, até acompanhei Tio Edmar, que era sócio dele no empreendimento, em suas peripécias de vendedor de destilados.
Magna, José, Mirna e Luiz (que seria o caçula se não houvesse logo falecido) foram os seguintes rebentos da família Gurgel Carlos, com esta já residindo na casa da Domingos Olímpio. Outras informações relacionadas com a nova morada: era a penúltima casa do lado ímpar da rua; e defrontava-se com a residência destinada ao “chefe da estação”. Com a via férrea passando a poucos metros, da casa da Domingos Olímpio se podia ver a movimentação dos trens, apanhando e deixando passageiros na Estação Ferroviária Otávio Bonfim. E esse fato particularmente me aprazia quando, às 3 horas da manhã, eu precisava tomar o trem que me levaria de férias ao Sítio Catolé, no município de Senador Pompeu.
Dentre os clãs que residiam na vizinhança, mantínhamos uma relação mais estreita com: a família Teixeira, constituída pela matriarca Dona Chiquinha e suas filhas Isa, Celsa e Dona Zezinha, que moravam em casas diferentes, as duas primeiras com os respectivos esposos (o agrônomo Dr. Paulo e o advogado Dr. Iúna Soares Bulcão) e os filhos, e a Dona Zezinha (que era viúva) com os seus muitos filhos; a família Brasil; e a família Maciel. Na penúltima quadra da Rua Domingos Olímpio, ficava uma casa inesquecível para todos nós, a de nº. 2209, onde residiam a Vovó Almerinda e a Tia Elza. Nela, disputávamos a afeição e os carinhos de nossa avó materna e, nas esticadas que dávamos ao imenso quintal, os regalos e as sombras das suas árvores frutíferas.
Houve ainda um terceiro endereço, a partir de 1996, quando o casal Luiz e Elda mudou-se para o bairro Monte Castelo. Passando a viver na companhia das filhas Magna e Mirna, que já vinham lá residindo. Tratava-se de um apartamento situado no primeiro andar do Condomínio Edifício Cristal, na Rua José Marrocos, nº. 407. Luiz o adquirira sem se desfazer da casa da Domingos Olímpio, onde manteve por mais algum tempo o seu escritório de advogado. Foi nesse apartamento do Monte Castelo que o patriarca da família Gurgel Carlos, cercado pelos cuidados dos familiares, viveu os últimos dias de sua profícua existência.

Paulo Gurgel Carlos da Silva
In: "Dos canaviais aos tribunais
- a vida de Luiz Carlos da Silva"

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