por Geraldo Bezerra (*)
Fortaleza, 14 de agosto de 2013, 14,55 horas, Hospital Otoclínica
Outra vez, a Maldita quis, tentou bravamente, levar-me. Testou-me, porém, com a graça de Deus e da Irmã Dulce – que tomei para minha madrinha, mesmo sem saber se ela aceitou – eu, mais uma vez, fui reprovado no teste de morrer.Em várias outras ocasiões, a Inimiga quis brincar de me matar, mas nos exames que fiz para morrer, não passei em nenhum. Se fosse como fazer vestibular para Medicina ou Letras, este GB tinha se lascado da primeira vez, mas morrer ainda não aprendi, com a graça de Deus.
A primeira vez em que não morri foi de AVC isquêmico. Bicho bruto, aquele. Uma dor de cabeça de estourar miolos me atacou e eu conheci que era a Megera a me visitar. Fiquei meio no desespero, mas dei ainda umas últimas instruções à esposa e filhos, que me acataram as ideias e assim fui salvo no Instituto Dr. José Frota. Fosse um desses GBs metidos a besta, talvez tivesse conseguido morrer em hospital de luxo, mas no Frotão, emergência é emergência mesmo e, pela primeira vez, não passei no teste de morrer. Não me arrependo, podem crer.
Depois de mais de uma semana, esse amigo de vocês estava outra vez no conforto do seu lar, um pouco vivente, um pouco sobrevivente. Tinha mais duas semanas para ficar deitado e fui pensando na vida. Concluí que morrer é fácil demais. Eu é que fui um morredor incompetente. Bem, já que o contrário de morrer é viver, decidi viver bem feliz. Garanti, palavra de GB, que no primeiro dia em que pudesse sair de casa, ia diretinho comprar um relógio de algibeira, aqueles com correntinha, dos tempos que não voltam mais. Era um sonho de consumo nunca realizado. Nunca, até o dia em que pisei calçada de rua. Com a firme decisão de um homem que passou pela morte e não morreu, fui direto ao comércio principal da cidade e comprei um bonito relógio como eu queria. Pronto, já não morreria sem ser proprietário de um relógio de algibeira. Hoje, olho o bichão ali na minha gaveta, não para me inteirar das horas, mas para namorar o troféu que conquistei por não ter sabido morrer.
A segunda vez em que não morri, estava em Senador Pompeu, casa dos filhos Michelle e George. Amanheci dizendo besteiras, conversa de doido e Michelle entrou em pânico porque presenciara o primeiro episódio. Enfiaram o candidato a defunto no automóvel da família e “voaram” para Fortaleza. E vinham numa velocidade tão desesperada que a Inimiga não teve pernas para acompanhá-los. Também pudera! O carro novo e a Danada cortando cabeças desde o episódio Caim e Abel, não é?
Levaram-me para o Frotão e depois HGF. Outra semana internado, mais uma vez, reprovado no vestibular de falecer.
O terceiro momento de não morrer, foi numa festa de Réveillon. Era o final do ano e quase coincide com o final deste GB. Saí de casa para o plantão das treze horas do HGF. Retornaria ao lar depois das dezenove e iria curtir a entrada do ano com a família. Retornei, sim, mas no dia 16 de janeiro. Saí de casa quase bom. Um certo mal-estar que não haveria de impedir um GB deste de tirar seis horas de sala de parto. Pois sim! Fui retirar uns trocados no caixa do banco, já no hospital e, segundo Dulce, uma auxiliar de enfermagem que colaborava conosco no serviço de botar meninos no mundo, viu-me cai-não-cai, agarrado com o caixa eletrônico. De imediato, colocou-me na cadeira de rodas e arrastou-me para o socorro. Fui salvo e olha o nome da ajuda, Dulce, o mesmo da madrinha que tenho no Céu, Irmã Dulce. Passei a noite em condições que não recomendo. Na manhã seguinte, a família me transferiu para um hospital particular, onde poderiam me assistir na vida e na morte, conforme fosse a vontade de Deus.
Durante duas semanas, a peleja do GB contra a morte conheceu existência, promoveu lágrimas, risos, esperanças, desesperos, exigiu rezas, simpatias... Mais uma vez, não passei no teste e recusei morrer. Venci a tal peleja e aqui estou contando a história.
A quarta vez em que não morri, teria sido uma morte mais bonita. Iria chegar a Fortaleza no bagageiro de um avião, gente esperando com roupas pretas, óculos escuros nas caras, coisa bem pomposa. Pois aconteceu de encontrar-me em terras pernambucanas. Ensaiei morrer no Recife, mas, outra vez, Deus teve a generosidade de me considerar reprovado. Um bruto edema agudo de pulmão proporcionou-me mudar de cor, tornando-me roxo e me fez compreender o verdadeiro significado da expressão popular “mais ruim do que falta de fôlego”. Mas já cheguei ao pronto socorro deitando ordens médicas: e que me enfiassem na veia duas ampolas de Furosemida de 40 mg; e que metessem um tubo de oxigênio nas minhas ventas e corressem a chamar o plantonista. Acertei na conduta terapêutica; a mocinha errou ao medicar sem ordem médica oficial – eu me identifiquei como médico, mas não estava ali médico e sim paciente – porém, a soma do meu acerto e seu erro evitou que o GB conhecesse o Paraíso. Ainda sou um habitante deste planeta, graças a Deus.
Logo que saí da dispneia terrível, quando puxei o fôlego e vi que era, outra vez, um homem que respirava, agradeci a Deus não ter passado de mais um ensaio, ainda sem estreia prevista. Foi aí que uma doutora, muito jovem e competente, cometeu a incoerência de me anunciar transferido para a UTI. Quando ela falou UTI, sem saber, estava me dando alta hospitalar. Como eu não tinha morrido, tinha a obrigação de viver e fui viver, sim, fazer compras no Recife, andando entre feirantes. Dia seguinte, peguei um avião para Fortaleza e – aí, sim – fui ao cardiologista. Meu amigo, grande poeta, Sérgio Macedo, deu-me a notícia de que eu tinha tido era um enfarte. Mandou-me ao cateterismo e aí, de verdade, eu temi pela estreia de tantos ensaios de morte.
Foi tudo muito tranquilo e o Dr. Aluísio Cruz, meu dileto colega no curso de Italiano, garantiu-me que meu coração estava ainda capaz. E eu acrescento: capaz de amar tudo e tantos que me faz ir sendo reprovado nestas insistentes tentativas da Maldita. Mas eu tenho um Deus maior que a Morte e tinha a minha madrinha Irmã Dulce, capaz de me fazer sempre incapaz no ofício de morrer.
Depois de tantas tentativas da Megera, depois de tantas resistências minhas, pensei que a Maldita haveria de desistir. Passarem-se alguns tempos de calmaria. Dei de frequentar consultório do endocrinologista Dr. Iran Barros. Segui suas instruções, tomei os remédios, mas o demônio da Gula queria mesmo era fazer o gol contra. Não perdi peso.
Em abril de 2013, ouvindo mais uma vez os rogos da família pedindo-me cuidados comigo mesmo, resolvi atendê-los. Creio que os meus anseios, finalmente, entraram em sintonia com os seus. Comecei uma radical mudança no comportamento alimentar e passei a fazer caminhadas. Certo é que, em apenas quatro meses, encontrei-me no meu melhor estado, desde que deixei de ter saúde. Perdi quinze quilos, trouxe a glicemia de mais de 300 para menos de 120; a pressão arterial chegou aos louváveis dez por seis, índices somente atingidos quando eu corria atrás de bola; deixei de tomar metade dos medicamentos, isto por decisão do médico; estava caminhando três quilômetros por dia. Pensei que tinha, enfim, escapado. Qual o quê?
Na manhã do Dia dos Pais, talvez para ser maior o drama, eis que me surge, não se sabe de onde, a Violenta. E foi logo pulando na minha frente, como a dizer “É hoje!” Botou foi para acabar com os ensaios. Aquele seria o dia da estreia. Comecei a tremer, fiquei preto e “desliguei”. A família me levou, às carreiras, ao hospital mais próximo, pois escolher tem as horas.
Dei entrada quase morto, um bruto choque séptico, originado de uma pielonefrite que se fez septicemia. Enfiaram-me na UTI – e desta vez, não pude ser contra – e hoje, quarto dia da ocorrência, estou meio zonzo ainda, mas contando a história.
Já me considero um veterano na arte de brincar com a morte. De hoje em diante, eu vou é brigar e, se a Maldita der sopa, eu é que vou matá-la qualquer dia, com a graça de Deus e da minha madrinha Irmã Dulce.
(*) GB é médico obstetra, escritor e membro atuante da Sobrames - CE.
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