Eles alugaram uma quitinete na Glória.
O modesto apartamento ficava num edifício de poucos andares, no último quarteirão da rua Benjamin Constant. Convidado pelo casal, deixei Copacabana para ir morar com eles na Glória.
Lembro-me de existir naquela rua um templo da Igreja Positivista do Brasil e o Hospital da Beneficência Portuguesa em que aconteciam as sessões clínicas comandadas pelo renomado cirurgião torácico Jesse Teixeira, sempre com a brilhante participação do Dr. Amarino, um médico radiologista da cidade. No fim da rua, à época havia também uma grande escadaria pela qual se podia ir da Glória ao Morro de Santa Teresa.
As obras da estação da Glória do Metrô do Rio já ocupavam uma parte do largo em que começava a rua Benjamim Constant. E, quando a Taberna da Glória (onde se dizia que Noel Rosa compôs "Conversa de Botequim") deu sua última função, eu fui até lá para dar as condolências. E, ao lado dos grandes sambistas e chorões do Rio Antigo, chorei um rio pelo fechamento da casa.
Foi um tempo inesquecível minha convivência carioca com João e Marta. Por vezes, íamos a bares e restaurantes da região para tomar chopes e comer petiscos. No geral, era a universitária Marta que, em seu terceiro turno de estudo/trabalho, preparava algo para que jantássemos.
Uma noite, ela resolveu fazer um chá mate gelado para todos. A infusão do mate ficou saborosa, porém muito concentrada. Cada um bebeu um copo cheio, a seguir repetindo-o. Então, fui ao quarto de empregada, onde uma cama de campanha me esperava para a dormida. Mas essa noite de sono jamais aconteceu. Ao amanhecer, dando a peleja por perdida, levantei-me para ir trabalhar. E... o que descubro? João e Marta, ambos insones, estavam na sala do apartamento a conversar. Ninguém ali conseguira dormir um mísero minuto por conta do consumo generalizado dos alcaloides (*) da erva-mate.
Morei com João e Marta por cerca de dezoito meses. Do segundo semestre de 1972 a fevereiro de 1974, quando fui transferido pelo Exército para o Hospital de Guarnição de Tabatinga, em Benjamim Constant, um município do Amazonas, na fronteira com Peru e Colômbia.
O meu bota-fora se deu em pleno carnaval. Convidei Marta e João para irmos a um baile carnavalesco num clube em Petrópolis, cidade em que eu dava plantões médicos nos fins de semana. Foi uma noite muito agradável, embora pairasse sobre nós o pressentimento de uma saudade irremediável.
Na quarta-feira de cinzas, despedi-me deles. Parti para o Amazonas. Um ano depois, o tempo especial de trabalho na fronteira deu-me o direito de escolher minha transferência para Fortaleza.
Findo seu período de mestrado, João foi aprovado em um concurso da Petrobrás, empresa em que trabalhou até aposentar-se. Marta concluiu o curso de Engenharia Química, fez o concurso para a Petrobrás e também foi chamada para a empresa. O casal residia em São José dos Campos-SP, quando Marta, aos 29 anos de idade, teve a vida ceifada por uma septicemia. É possível que essa doença,de natureza infecciosa, estivesse associada a efeitos causados pelo contato prolongado com agentes químicos na REVAP, a refinaria em que ela trabalhava.
João ainda residiria por muitos anos em Fortaleza. Formou-se em Direito e trabalhou com meu pai na nova profissão que abraçou. Abriu uma barraca na Praia do Futuro e gostava de ir ao Mercado dos Pinhões para ouvir MPB. A morte abrupta e inesperada em 2015 cortou-lhe outros planos.
De Marta e João, nasceu em Campinas-SP o filho Leonardo Gurgel Carlos Pires, em 1976. Órfão de mãe quando tinha apenas 3 anos, Leonardo é hoje promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Ceará, sendo casado com Liduína Façanha. O casal tem três filhos: Leonardo Filho, Luiz Otávio e Marta Gurgel Carlos Pires (cujo nome completo é igual ao nome de casada de sua avó Marta).
(*) cafeína, teofilina, teobromina etc.
(https://vejario.abril.com.br/blog/as-ruas-do-rio/rua-benjamin-constant-e-rua-do-fialho-gloria/)
(http://museudacancao.blogspot.com.br/2012/11/conversa-de-botequim.html)
(https://youtu.be/c2B4O5hR7RU)
João e Marta |