PINGA EM MIM

Nonato Albuquerque (*)
Pinga, birita, bicada. Não importa a marca, tudo é uma mesma bebida: cachaça. Lapada, caninha, catiripapo ou branquinha. Na hora de encerrar a conta o que se vê é gente tomando uma, melando o bico, queimando o dente com uma boa dose da mais popular de nossas bebidas. A cachaça é a preferência nacional não apenas do João Canabrava (personagem do humorista Tom Cavalcante, na Escolinha) e de outros papudinhos, como são aqueles que a elegeram aos pés do balcão das bodegas e mercearias, mas também por um público mais requintado. Pois é, com a exportação de algumas marcas como a Ypioca, ela ganhou o mundo e o paladar de gente acostumada a outro tipo de bebida. Bastou isso para que as agências dessem um melhor tratamento às peças anunciando esse tipo de bebida. Afinal, aqui mesmo no Brasil, muita gente boa não almoça ou janta sem antes "tomar uma" para abrir o apetite.
Na praça da Gentilândia há uma verdadeira confraria da cachaça. São os diaristas do "seu Chagas" e do bar do Luiz, pontos de encontro de prefeitos do interior, de funcionários públicos e gente que adotou a pinga como "desculpa" para um encontro. Ao lado da Secretaria de Segurança, o comerciante Zeca Araújo não dá conta atendendo a juízes, advogados, velhos políticos e jornalistas que sempre circulam ali para "umas e outras", em torno de um bom papo. A cachaça tem essa vantagem: quebra o gelo do silêncio, dá um tiro na timidez, aproxima pessoas de níveis diferentes sem criar nenhuma medida restritiva. Na Praia de Iracema, o bar do Getúlio é a confirmação disso. Até hoje é o ponto de encontro de gente bem, "tudo de paletó e gravata", que corta o caminho do trabalho para casa para uma lapada. No Batecaverna, situado na Pinto Madeira, quase início da Torres Câmara, médicos o elegeram como seu espaço para virar um copo. E todos só bebem cachaça.
Há verdadeiros santuários dos pinguços em Fortaleza. Os intelectuais, como Luciano Maia e Gervásio de Paula, preferem o encontro na Padaria Espiritual, na rua 25 de Março com Pero Coelho, um dos locais mais antigos na tradição dos que bebem uma cachacinha. Mas um dos bares mais antigos ainda em atividade é o Pirajá, situado na Guilherme Rocha. Ali, o ar das pessoas e dos móveis rescende a cana.
Havia um local no centro de Fortaleza, que era cana pura, o Bar Frixtil, localizado na Pedro Pereira. Pinguços famosos da vida cultural desta cidade firmaram muitos encontros, sempre ao lado de umas boas doses em dias de chuva.
Em dias coloniais como os desse cinzento fevereiro, aumenta a rotatividade nos bares e bodegas onde a cachaça reina, indiferente à invasão de outras bebidas mais nobres, como a vodca que chegou a ganhar a admiração da intelligentzia cearense nas duas últimas décadas. Ela tem ido à luta, sofisticando-se na caipirinha e ganhando novos consumidores, além de uma preocupação com o ítem qualidade a fim de quebrar um pouco o velho preconceito que a acompanha vida afora, o que a levou ser desprezada pela maioria dos brasileiros.
Hoje em dia, a coisa mudou. Há várias marcas da cachaça nacional, inclusive fabricadas aqui mesmo no Ceará, que detêm premiações internacionais como o da Associazone di Controllo de Qualitá, concedido à Chave de Ouro e entregue pelo príncipe Rainier de Mônaco. Nada mais chique, embora o preconceito para se assumir como um admirador da pinga ainda seja muito alto.Muita gente boa se negou a dar testemunho dizendo ser um bebedor de cana. Puro preconceito.
Na verdade, a origem de tudo isso é fácil de ser identificada. Por ter surgido entre os escravos que trabalhavam nas casas de moagem, a cachaça sempre foi olhada de banda pela chamada granfinagem brasileira. Isso não quer dizer que rico nunca tenha provado da bebida no Brasil colonial, muito pelo contrário. Carraspanas de senhores de engenho sempre foram escandalosas e acabaram mal para os cativos. Para compensar todo o banzo, os escravos iam à desforra com a cana. Ela, a exemplo do que ainda hoje acontece em relação às dores de esquina (sic) dos amantes, funcionava como uma ótima fuga para os escravos. E não era apenas fuga no sentido subjetivo da palavra, não. Literalmente, a coisa funcionava.
Historiadores costumam situar em torno de 1540 o início do cultivo da cana-de-açúcar no Brasil. O aparecimento da cachaça é contemporâneo a essa cultura. Em 1664, quem diria, a cachaça subia à cabeça dos escravos e fazia o sonho da libertação se tornar realidade para muitos. Aqueles escravos que não tinham coragem de engrossar as filas de fujões, tomavam umas "calibrinas" e o "santo" baixava lhes dando ânimo para enfrentar a arriscada aventura. Muita gente assinou carta de alforria por conta própria, depois de um porre homérico antecipando o que a História nunca irá reconhecer: a pinga brasileira foi a Lei Áurea de muito negro. Verdade, depois de uma rodada de aguardente e a fuga, muitos senhores de escravos é que ficaram na maior ressaca.
Por conta desse "auê calibrino", os donos do mundo escravocrata de Santos e de São Vicente resolveram abrir os olhos. Vetaram por decreto o consumo da cachaça "como sendo altamente prejudicial à capitania". Isso foi no ano de 1664, iniciando o regime de clandestinidade da bebida nas tendas da colônia. O mais curioso é de que esse decreto nunca foi revogado, o que leva alguns ensaistas famosos a a garantirem - veja só - que a cachaça continua no Brasil em regime de semiclandestinidade, sem estatuto legalizado.
(*) Nonato Albuquerque é jornalista, blogueiro e apresentador de TV. Publicou esta matéria no Jornal O Povo, edição de 23 de fevereiro de 1992, com ilustração de Klevisson. Eu, Paulo Gurgel, digitei-a para publicação em meio eletrônico.

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