ANTÔNIO SALES, O PRIMEIRO "FORNEIRO" DA PADARIA ESPIRITUAL

"Na porta de uma livraria de Tebas lia-se: Remédios para a alma." 
Diodorus Siculus - do livro "Vivências" - Ed. Vozes
Em 30 de maio de 1892, 30 anos antes da Semana de Arte Moderna, um grupo de intelectuais cearenses criou a Padaria Espiritual.
Mais do que uma agremiação literária, a Padaria Espiritual foi um breve, mas produtivo, movimento cultural que destacava o nacionalismo, a irreverência e a criatividade de uma parcela de intelectuais que, através do humor e da crítica social, produziu "um movimento literário modernista que antecedeu em muitos anos a Semana de Arte Moderna. Fariam história."
Na Padaria Espiritual, a única coisa que não se via era algo parecido com antropofagia, pois na capitania de Siará Grande não se admitia essas coisas entre os curumins. Estes buscavam a convivência lúdica, saudável e civilizada das cunhãs e cunhatãs, nos lugares apropriados, ou seja, nas alcovas, praças, cinemas, praias, pé de serra, caatinga, ribeirões, açudes e Cine São Luiz.
Em suma, em qualquer lugar onde havia uma cabrita saltitando de paixão, quase implorando para ser o prato principal das canetas antropófagas dos curupiras transformados em Padeiros.
Os Padeiros da Padaria Espiritual eram modernistas muito tempo antes de 1922 e os modernistas de 1922 foram Padeiros de um pão meio dormido, mas a fornada de seus pães foi muito mais abrangente e cosmopolita.
Sem ufanismos tolos, o Ceará é pioneiro em tanta coisa que um dia, algum historiador mais sério vai acabar provando que o Brasil somente foi descoberto quando os invasores portugueses avistaram os "verdes mares bravios onde canta a jandaia na fronde do carnaubal", ainda que existam registros históricos sobre os tais invasores aportarem - mesmo sem ter porto - em Porto Seguro e Cabrália.
Maiores informações sobre a Padaria Espiritual podem ser obtidas no livro BREVE HISTÓRIA DA PADARIA ESPIRITUAL, do escritor Sânzio de Azevedo, professor da Universidade Federal do Ceará e membro da Academia Cearense de Letras – ACL. Este livro pode ser obtido na Editora da Universidade Federal do Ceará.
Comentário do colaborador Fernando Gurgel Filho a ANTÔNIO SALES E SUA ÉPOCA, a nota que antecedeu esta em "Linha do Tempo".

ANTÔNIO SALES E SUA ÉPOCA

Em 1973, quando eu atendia no Pavilhão de Isolamento do Hospital Central do Exército, em uma roda de conversação (dessas que se formam no local de trabalho), ouvi um colega se referir ao Coronel Bóia. Com um certo ar de mofa, o que percebi na continuidade da conversa. Quando ficou explícito que o oficial citado, além de dedicar-se à carreira de médico militar, tinha interesses em outras áreas como a literatura, a música, o jornalismo, o teatro e a radiofonia.
Wilson da Silva Bóia - o seu nome completo. Mas só vim a conhecê-lo alguns anos depois quando eu tinha voltado a morar em Fortaleza.
Na função de capitão médico do Hospital Geral de Fortaleza, e também respondendo pela Chefia do Serviço de Saúde da 10.ª RM, um dia fui comunicado que o Coronel Bóia encontrava-se em trânsito por ter sido designado para a função que eu estava interinamente exercendo.
No tempo aprazado, o coronel apresenta-se pronto para o serviço no Quartel General da 10.ª RM. Em nosso primeiro encontro, passei-lhe a situação do Serviço de Saúde Regional e terminamos conversando sobre amenidades.
Bóia, um aficionado pela música brasileira, quis conhecer os músicos da terra. Numa noite, levei-o ao Nick Bar, na Praia de Iracema. A cantora e proprietária da casa, Iara, identificou-o imediatamente como sendo alguém que tinha visto na televisão. Coronel Bóia, de fato, se tornara conhecido em todo o Brasil por sua participação no programa do Paulo Gracindo (o "8 ou 800?", que esteve no ar entre 1976 e 1977), respondendo sobre a vida e a obra de Oswaldo Cruz.
No Nick Bar, além de Iara, Bóia conheceu os violonistas Joãozinho, Luciano, Neném "Macaco", Pedro Ventura (7 cordas) e o Macaúba do Bandolim.
Adiante, e sem necessidade de minha intermediação, ele fez amizades com integrantes de um grupo de choro liderado por um militar da Aeronáutica (Troglio?), exímio flautista e amigo do Altamiro Carrilho. O que pude confirmar na noite em que Altamiro, apresentando-se no Theatro José de Alencar, fez questão de que o militar flautista subisse ao palco para tocar com ele.
Numa de nossas conversas, Bóia me disse que, em sua temporada no Ceará, iria dar prosseguimento a umas pesquisas que iniciara no Rio de Janeiro sobre Antonio Sales. Ao estudar a vida do higienista Oswaldo Cruz, foi que ele chegara a Antônio Sales, cujas trovas satíricas no Correio da Manhã, ajudaram a afastar Nuno de Andrade da chefia da Saúde Pública e a beneficiar, indiretamente, aquele que erradicaria a febre amarela do Rio de Janeiro, no começo do século XX.
E, sendo Wilson Bóia, como foi dito, médico e militar, fez questão de frisar sua grande admiração pelo autor de "Aves de Arribação", que escreveu estes versos:
"Vi um médico fardado;
Que completo matador.'
Quem escapar do soldado
Não escapa do doutor. "
Trazendo consigo anotações de episódios pitorescos , poemas, conferências, artigos, em suma, textos onde se documenta a estada de Antônio Sales no Rio, Wilson Bóia se lançou à tarefa de, com esses subsídios e mais o que iria colher nos arquivos cearenses, traçar o perfil biográfico desse que é um dos maiores nomes da cultura de nossa terra.
Lançado em 1984, "Antônio Sales e sua época" foi elaborado para ficar. Prefaciando a obra, escreveu Claudio Martins (então presidente da Academia Cearense de Letras): "Até aqui o mestre de "Aves de Arribação" era um nome nacional reconhecido e consagrado por avaliações esparsas, às vezes de difícil acesso. Conhecia-se o prosador, admirava-se o poeta e compositor, festejava-se o jornalista intimorato. Todavia, só agora, graças a esta paciente lucubração nos domínios da pesquisa acurada, tem-se um retrato de corpo inteiro do polígrafo cearense, que conquistou lugar de excepcional relevo no cenário cultural da Nação."
BÓIA, WS. Antônio Sales e sua época. Fortaleza, BNB, 1984. 684p.
AZEVEDO, Sânzio. Lembrando Wilson Bóia. Academia Cearense de Letras, 2005. Disponível em: http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/2005/ACL_2005_006_Lembrando_Wilson_Boia_-_Sanzio_de_Azevedo.pdf. Acesso em: 1º jun. 2020.
MILLARCH, Aramis. Wilson Bóia, o amor pela MPB e história. Tabloide Digital, 1990. Disponível em: http://www.millarch.org/artigo/wilson-boia-o-amor-pela-mpb-historia. Acesso em: 1º jun. 2020.
PINTO, José Alcides. Wilson Bóia, Antônio Sales e sua época. Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, 1984. Rev de letras, 7 (1/2) - jan./dez. 1984. Disponível em: http://docplayer.com.br/56458910-Boia-wilson-antonio-sales-e-sua-epoca-fortaleza-banco-do-nordeste-do-brasil-jose-alcides-pinto.html. Acesso em: 1º jun. 2020.

PINGA EM MIM

Nonato Albuquerque (*)
Pinga, birita, bicada. Não importa a marca, tudo é uma mesma bebida: cachaça. Lapada, caninha, catiripapo ou branquinha. Na hora de encerrar a conta o que se vê é gente tomando uma, melando o bico, queimando o dente com uma boa dose da mais popular de nossas bebidas. A cachaça é a preferência nacional não apenas do João Canabrava (personagem do humorista Tom Cavalcante, na Escolinha) e de outros papudinhos, como são aqueles que a elegeram aos pés do balcão das bodegas e mercearias, mas também por um público mais requintado. Pois é, com a exportação de algumas marcas como a Ypioca, ela ganhou o mundo e o paladar de gente acostumada a outro tipo de bebida. Bastou isso para que as agências dessem um melhor tratamento às peças anunciando esse tipo de bebida. Afinal, aqui mesmo no Brasil, muita gente boa não almoça ou janta sem antes "tomar uma" para abrir o apetite.
Na praça da Gentilândia há uma verdadeira confraria da cachaça. São os diaristas do "seu Chagas" e do bar do Luiz, pontos de encontro de prefeitos do interior, de funcionários públicos e gente que adotou a pinga como "desculpa" para um encontro. Ao lado da Secretaria de Segurança, o comerciante Zeca Araújo não dá conta atendendo a juízes, advogados, velhos políticos e jornalistas que sempre circulam ali para "umas e outras", em torno de um bom papo. A cachaça tem essa vantagem: quebra o gelo do silêncio, dá um tiro na timidez, aproxima pessoas de níveis diferentes sem criar nenhuma medida restritiva. Na Praia de Iracema, o bar do Getúlio é a confirmação disso. Até hoje é o ponto de encontro de gente bem, "tudo de paletó e gravata", que corta o caminho do trabalho para casa para uma lapada. No Batecaverna, situado na Pinto Madeira, quase início da Torres Câmara, médicos o elegeram como seu espaço para virar um copo. E todos só bebem cachaça.
Há verdadeiros santuários dos pinguços em Fortaleza. Os intelectuais, como Luciano Maia e Gervásio de Paula, preferem o encontro na Padaria Espiritual, na rua 25 de Março com Pero Coelho, um dos locais mais antigos na tradição dos que bebem uma cachacinha. Mas um dos bares mais antigos ainda em atividade é o Pirajá, situado na Guilherme Rocha. Ali, o ar das pessoas e dos móveis rescende a cana.
Havia um local no centro de Fortaleza, que era cana pura, o Bar Frixtil, localizado na Pedro Pereira. Pinguços famosos da vida cultural desta cidade firmaram muitos encontros, sempre ao lado de umas boas doses em dias de chuva.
Em dias coloniais como os desse cinzento fevereiro, aumenta a rotatividade nos bares e bodegas onde a cachaça reina, indiferente à invasão de outras bebidas mais nobres, como a vodca que chegou a ganhar a admiração da intelligentzia cearense nas duas últimas décadas. Ela tem ido à luta, sofisticando-se na caipirinha e ganhando novos consumidores, além de uma preocupação com o ítem qualidade a fim de quebrar um pouco o velho preconceito que a acompanha vida afora, o que a levou ser desprezada pela maioria dos brasileiros.
Hoje em dia, a coisa mudou. Há várias marcas da cachaça nacional, inclusive fabricadas aqui mesmo no Ceará, que detêm premiações internacionais como o da Associazone di Controllo de Qualitá, concedido à Chave de Ouro e entregue pelo príncipe Rainier de Mônaco. Nada mais chique, embora o preconceito para se assumir como um admirador da pinga ainda seja muito alto.Muita gente boa se negou a dar testemunho dizendo ser um bebedor de cana. Puro preconceito.
Na verdade, a origem de tudo isso é fácil de ser identificada. Por ter surgido entre os escravos que trabalhavam nas casas de moagem, a cachaça sempre foi olhada de banda pela chamada granfinagem brasileira. Isso não quer dizer que rico nunca tenha provado da bebida no Brasil colonial, muito pelo contrário. Carraspanas de senhores de engenho sempre foram escandalosas e acabaram mal para os cativos. Para compensar todo o banzo, os escravos iam à desforra com a cana. Ela, a exemplo do que ainda hoje acontece em relação às dores de esquina (sic) dos amantes, funcionava como uma ótima fuga para os escravos. E não era apenas fuga no sentido subjetivo da palavra, não. Literalmente, a coisa funcionava.
Historiadores costumam situar em torno de 1540 o início do cultivo da cana-de-açúcar no Brasil. O aparecimento da cachaça é contemporâneo a essa cultura. Em 1664, quem diria, a cachaça subia à cabeça dos escravos e fazia o sonho da libertação se tornar realidade para muitos. Aqueles escravos que não tinham coragem de engrossar as filas de fujões, tomavam umas "calibrinas" e o "santo" baixava lhes dando ânimo para enfrentar a arriscada aventura. Muita gente assinou carta de alforria por conta própria, depois de um porre homérico antecipando o que a História nunca irá reconhecer: a pinga brasileira foi a Lei Áurea de muito negro. Verdade, depois de uma rodada de aguardente e a fuga, muitos senhores de escravos é que ficaram na maior ressaca.
Por conta desse "auê calibrino", os donos do mundo escravocrata de Santos e de São Vicente resolveram abrir os olhos. Vetaram por decreto o consumo da cachaça "como sendo altamente prejudicial à capitania". Isso foi no ano de 1664, iniciando o regime de clandestinidade da bebida nas tendas da colônia. O mais curioso é de que esse decreto nunca foi revogado, o que leva alguns ensaistas famosos a a garantirem - veja só - que a cachaça continua no Brasil em regime de semiclandestinidade, sem estatuto legalizado.
(*) Nonato Albuquerque é jornalista, blogueiro e apresentador de TV. Publicou esta matéria no Jornal O Povo, edição de 23 de fevereiro de 1992, com ilustração de Klevisson. Eu, Paulo Gurgel, digitei-a para publicação em meio eletrônico.

VISITADORAS DE ALIMENTAÇÃO

Quem ensina a comer ensina a viver. Llotzky
Uma pesquisa sobre a constituição do campo do saber em alimentação e nutrição, com enfoque no espaço formativo e nas práticas curriculares intervencionistas das Visitadoras de Alimentação no cenário político e institucional do SAPS-CE, no período de 1944 a 1966, foi a tese apresentada em 2010 por Marlene Lopes Cidrack ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como exigência para a obtenção do Título de Doutor. Para a análise da formação dessas profissionais, a pesquisadora estudou a experiência da Escola de Visitadoras de Alimentação Agnes Junes Leith - EVA, que funcionou no Estado do Ceará neste período, com foco nas vivências cotidianas e práticas curriculares do curso, centrando a investigação nas ações de educação alimentar junto à classe trabalhadora, escolares e população em geral. 
Destaco nesta tese de Doutorado as referências à saudosa Francica Carlos da Silva (Tia Fransquinha), bem como à disciplina que ela lecionava na Escola.
No período em que funcionou a Escola, de 1944 a 1966, eles (os professores) se sucederam ministrando as diversas disciplinas como está posto a seguir:
(...) Corte e Costura - professora Francisca Carlos da Silva. (...) p.80-81
Na disciplina Corte e Costura, as alunas aprendiam como confeccionar roupas para adultos e crianças e, também, a fazer pequenos consertos - bainhas, pregar botões e fecho eclair. O contato com trabalhos manuais proporcionava às alunas segurança para conversar com as donas de casa, porque, ao falarem a mesma linguagem, a linguagem da trabalhadora do lar, as alunas mais se aproximavam das pessoas visitadas. p.96
A tese da Doutora Marlene Lopes Cidrack traz também, na página 78, a reprodução de uma fotografia de uma "aula de Corte e Costura" em 1950.
Fontes
http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3641
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3641/1/2010_TESE_MLCIDRACK.pdf
http://www.editora.ufc.br/catalogo/63-nutricao/508-visitadoras-de-alimentacao-legado-da-escola-agnes-june-leith (Visitadoras de alimentação: legado da escola Agnes June Leith)