ANTÔNIO SALES E SUA ÉPOCA

Em 1973, quando eu atendia no Pavilhão de Isolamento do Hospital Central do Exército, em uma roda de conversação (dessas que se formam no local de trabalho), ouvi um colega se referir ao Coronel Bóia. Com um certo ar de mofa, o que percebi na continuidade da conversa. Quando ficou explícito que o oficial citado, além de dedicar-se à carreira de médico militar, tinha interesses em outras áreas como a literatura, a música, o jornalismo, o teatro e a radiofonia.
Wilson da Silva Bóia - o seu nome completo. Mas só vim a conhecê-lo alguns anos depois quando eu tinha voltado a morar em Fortaleza.
Na função de capitão médico do Hospital Geral de Fortaleza, e também respondendo pela Chefia do Serviço de Saúde da 10.ª RM, um dia fui comunicado que o Coronel Bóia encontrava-se em trânsito por ter sido designado para a função que eu estava interinamente exercendo.
No tempo aprazado, o coronel apresenta-se pronto para o serviço no Quartel General da 10.ª RM. Em nosso primeiro encontro, passei-lhe a situação do Serviço de Saúde Regional e terminamos conversando sobre amenidades.
Bóia, um aficionado pela música brasileira, quis conhecer os músicos da terra. Numa noite, levei-o ao Nick Bar, na Praia de Iracema. A cantora e proprietária da casa, Iara, identificou-o imediatamente como sendo alguém que tinha visto na televisão. Coronel Bóia, de fato, se tornara conhecido em todo o Brasil por sua participação no programa do Paulo Gracindo (o "8 ou 800?", que esteve no ar entre 1976 e 1977), respondendo sobre a vida e a obra de Oswaldo Cruz.
No Nick Bar, além de Iara, Bóia conheceu os violonistas Joãozinho, Luciano, Neném "Macaco", Pedro Ventura (7 cordas) e o Macaúba do Bandolim.
Adiante, e sem necessidade de minha intermediação, ele fez amizades com integrantes de um grupo de choro liderado por um militar da Aeronáutica (Troglio?), exímio flautista e amigo do Altamiro Carrilho. O que pude confirmar na noite em que Altamiro, apresentando-se no Theatro José de Alencar, fez questão de que o militar flautista subisse ao palco para tocar com ele.
Numa de nossas conversas, Bóia me disse que, em sua temporada no Ceará, iria dar prosseguimento a umas pesquisas que iniciara no Rio de Janeiro sobre Antonio Sales. Ao estudar a vida do higienista Oswaldo Cruz, foi que ele chegara a Antônio Sales, cujas trovas satíricas no Correio da Manhã, ajudaram a afastar Nuno de Andrade da chefia da Saúde Pública e a beneficiar, indiretamente, aquele que erradicaria a febre amarela do Rio de Janeiro, no começo do século XX.
E, sendo Wilson Bóia, como foi dito, médico e militar, fez questão de frisar sua grande admiração pelo autor de "Aves de Arribação", que escreveu estes versos:
"Vi um médico fardado;
Que completo matador.'
Quem escapar do soldado
Não escapa do doutor. "
Trazendo consigo anotações de episódios pitorescos , poemas, conferências, artigos, em suma, textos onde se documenta a estada de Antônio Sales no Rio, Wilson Bóia se lançou à tarefa de, com esses subsídios e mais o que iria colher nos arquivos cearenses, traçar o perfil biográfico desse que é um dos maiores nomes da cultura de nossa terra.
Lançado em 1984, "Antônio Sales e sua época" foi elaborado para ficar. Prefaciando a obra, escreveu Claudio Martins (então presidente da Academia Cearense de Letras): "Até aqui o mestre de "Aves de Arribação" era um nome nacional reconhecido e consagrado por avaliações esparsas, às vezes de difícil acesso. Conhecia-se o prosador, admirava-se o poeta e compositor, festejava-se o jornalista intimorato. Todavia, só agora, graças a esta paciente lucubração nos domínios da pesquisa acurada, tem-se um retrato de corpo inteiro do polígrafo cearense, que conquistou lugar de excepcional relevo no cenário cultural da Nação."
BÓIA, WS. Antônio Sales e sua época. Fortaleza, BNB, 1984. 684p.
AZEVEDO, Sânzio. Lembrando Wilson Bóia. Academia Cearense de Letras, 2005. Disponível em: http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/2005/ACL_2005_006_Lembrando_Wilson_Boia_-_Sanzio_de_Azevedo.pdf. Acesso em: 1º jun. 2020.
MILLARCH, Aramis. Wilson Bóia, o amor pela MPB e história. Tabloide Digital, 1990. Disponível em: http://www.millarch.org/artigo/wilson-boia-o-amor-pela-mpb-historia. Acesso em: 1º jun. 2020.
PINTO, José Alcides. Wilson Bóia, Antônio Sales e sua época. Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, 1984. Rev de letras, 7 (1/2) - jan./dez. 1984. Disponível em: http://docplayer.com.br/56458910-Boia-wilson-antonio-sales-e-sua-epoca-fortaleza-banco-do-nordeste-do-brasil-jose-alcides-pinto.html. Acesso em: 1º jun. 2020.

Um comentário:

Fernando Gurgel disse...

Antonio Sales foi o primeiro "forneiro" da Padaria Espiritual:

"Na porta de uma livraria de Tebas lia-se: Remédios para a alma." Diodorus Siculus - do livro Vivências - Ed. Vozes

Em 30 de maio de 1892, 30 anos antes da Semana de Arte Moderna, um grupo de intelectuais cearenses criou a Padaria Espiritual.

Mais do que uma agramiação literária, a Padaria Espiritual foi um breve, mas produtivo, movimento cultural que destacava o nacionalismo, a irreverência e a criatividade de uma parcela de intelectuais que, através do humor e da crítica social, produziu "um movimento literário modernista que antecedeu em muitos anos a Semana de Arte Moderna. Fariam história." (in: http://www.editora.ufc.br/index.php?option=com_content&task=view&id=416&Itemid=28)

Na Padaria Espiritual, a única coisa que não se via era algo parecido com antropofagia, pois na capitania de Siará Grande não se admitia essas coisas entre os curumins. Estes buscavam a convivência lúdica, saudável e civilizada das cunhãs e cunhatãs, nos lugares apropriados, ou seja, nas alcovas, praças, cinemas, praias, pé de serra, caatinga, ribeirões, açudes e Cine São Luiz.

Em suma, em qualquer lugar onde havia uma cabrita saltitando de paixão, quase implorando para ser o prato principal das canetas antropófagas dos curupiras transformados em Padeiros.

Os Padeiros da Padaria Espiritual eram modernistas muito tempo antes de 1922 e os modernistas de 1922 foram Padeiros de um pão meio dormido, mas a fornada de seus pães foi muito mais abrangente e cosmopolita.

Sem ufanismos tolos, o Ceará é pioneiro em tanta coisa que um dia, algum historiador mais sério vai acabar provando que o Brasil somente foi descoberto quando os invasores portugueses avistaram os "verdes mares bravios onde canta a jandaia na fronde do carnaubal", ainda que existam registros históricos sobre os tais invasores aportarem - mesmo sem ter porto - em Porto Seguro e Cabrália.

Maiores informações sobre a Padaria Espiritual podem ser obtidas no livro Breve História da Padaria Espiritual, do escritor Sânzio de Azevedo, professor da Universidade Federal do Ceará e membro da Academia Cearense de Letras – ACL. Este livro pode ser obtido na Editora da Universidade Federal do Ceará.

Vide: http://www.editora.ufc.br/index.php?option=com_content&task=view&id=416&Itemid=28