Hoje, vou falar no duro sobre o muro.
Protegendo os fundos da quadra onde ficava a igreja de Nossa Senhora das Dores, em Otávio Bonfim, e com pouca vigilância do outro lado da rua (onde havia poucas casas), o muro se prestava a algumas fornicações.
Uma delas, as sessões de "amassos" dos casais em trânsito por aquele trecho mal iluminado da rua Domingos Olímpio. Ainda que eles tivessem de suportar o mau cheiro da urina deixada pelos ébrios (outra fornicação), quando da passagem destes pelo local.
Era o preço a pagar pelos que não tinham dinheiro (nem tempo) para ir a um chatô.
Outra fornicação era escalar o muro para entrar na propriedade dos franciscanos frades. Ninguém fazia isso para ir à igreja ("esta porta não se fecha / contra ela não há queixa", como dizia
Vicente Celestino) nem pelo intuito de devassar o convento. O objetivo da molecagem era mesmo entrar sem pagar no Cine Familiar.
O muro de tão alto parecia uma muralha. Mas, graças a um processo colaborativo, estratégicas reentrâncias haviam sido esculpidas em algumas das colunas para o encaixe dos pés dos obstinados alpinistas urbanos.
Tampouco o muro tinha pega-ladrão, cacos de vidro ou cerca elétrica.
A sessão começava. Uma parte do espetáculo consistia em ver os "penetras", entrando sorrateiramente no cinema pelas portas que davam para o campo de futebol.
As portas eram deixadas abertas para que a brisa amenizasse o calor do cinema. Ocupado com o projetor,
Vavá não podia abandonar o posto para expulsar os "penetras", e estes também contavam com o apoio silencioso dos pagantes.
Em correspondência recente,
Tio Edmar comentou ter sido um praticante do popular esporte (que cultivava a gratuidade).
No mês de junho, especialmente, o muro "bombava". Pois passava a ser o "campo de provas" das bombas fabricadas pelo Dão. Sempre que alguém comprava fogos na lojinha do mané fogueteiro de Otávio Bonfim, pelo menos uma bomba (de parede,
of course) tinha de ser logo testada no muro das fornicações.
E o silêncio já era.
PGCS
Comentários
Gostaria de acrescentar que havia também um jovem frade franciscano, que pegava o fusca do convento, e acompanhado de um seminarista, dava uma volta, passando lentamente, observando e identificando as posições dos casais em "amassos". Depois, ele entrava no convento, usava uma longa escada, para lançar sobre os amantes, bolas de soprar cheias de água, pondo-os a correr.
Marcelo Gurgel
Não conheci o muro, mas adorei sua crônica.
Celina Côrte
Eu não sei se o "Tio Edmar" é o mesmo que jogava comigo no Montese, do Frei Teodoro. Caso seja o craque Edmar Gurgel, por favor, diga-me onde ele anda, como ele está. Pretendo , com o João Fujita, reunir o que ainda resta daquele inesquecível tempo.
José Maria Chaves
Sua avó Dona Almerinda, se não me engano, morava justamente nos fundos do convento. Era uma das vítimas das famosas bombas rasga-latas do Dão, cunhado do "Seu" Edmundo que tinha uma mercearia na esquina da Dom Jerônimo com a Domingos Olímpio. Sobre o muro das fornicações, seus frequentadores eram constrangidos pelos moleques, que passavam soltando a famosa frase: "vai comer ou quer que embrulhe?". Um dia eu conto a estória de um "Frei", que saiu às altas horas do leilão de Santo Antonio, e já com a cuca cheia de vinho do Porto, errou o caminho dos seus aposentos, atravessou a Juvenal Galeno, e foi continuar a bebedeira na Cantina Glória, sendo muito bem recebido pelas "meninas" do Cercado Zé Padre.
Wilson Botelho Ramos