O VESTIBULAR DA CECÍLIA MEIRELES

O vestibular que nos levou em 1966 à admissão na Faculdade de Medicina da UFC constou de cinco provas aplicadas em dias separados:
Física, Química, Biologia, Português e Inglês.
Para ser aprovado, o Concurso de Habilitação (leia-se: Exame Vestibular) exigia como nota mínima o 5 para Biologia e a Química; e o 4 para a Física, o Português e o Inglês.
Cada candidato, portanto, teria que matar cinco leões. Além disso, tinha que estar de olho no desempenho dos outros gladiadores, pois havia cerca de oitocentos candidatos para as cem vagas que estavam sendo disputadas.
A pontuação máxima foi obtida pelo colega Otoni Cardoso do Vale que fez 35, e coube-lhe o 1.º lugar da Medicina.
Surpreendendo os candidatos com o poema SURPRESA, o processo seletivo de 1966 ficou conhecido como "O vestibular da Cecília Meireles". Não era frequente em competições do tipo a escolha de uma poeta da Segunda Geração do Modernismo (*) para a análise literária pelos candidatos.

SURPRESA

Trago os cabelos crespos de vento
e o cheiro das rosas nos meus vestidos.
O céu instala no meu pensamento
aos seus altos azuis estremecidos.

Águas borbulhantes, árvores tranqüilas
vão adormentando meus tempos chorados.
E a tarde oferece às minhas pupilas
nuvens de flores por todos os lados.

Ó verdes sombras, claridades verdes,
que esmeraldas sensíveis hei nutrido,
para sobre o meu coração verterdes
mirra de primaveras e de olvidos?

Ó céus, ó terra que de tal maneira
ardente e amarga tenho atravessado,
por que agora pensais com tão fino cuidado
vossa mansa,calada, ferida prisioneira?

Cecília Meireles
In: Mar absoluto (1945)

OU ISTO (a poeta-surpresa na prova de Português) OU AQUILO (o grau de dificuldade das questões formuladas no Concurso de Habilitação), digamos que ambos, foram os fatores concorrenciais para que apenas 47 das 100 vagas disponíveis fossem inicialmente preenchidas.
E seguiu-se um segundo certame (com as respectivas revisões) a fim de que todas as vagas ofertadas fossem finalmente preenchidas.
As listas com os nomes dos aprovados foram afixadas num saguão da Reitoria.
Na lista da Agronomia, um deles saiu com nome e apelido (Titico). Com o tempo, seríamos apresentados por um amigo comum, o violão.

(*) Foram destaques da 2.ª Geração do Modernismo: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Mario Quintana e Cecília Meireles.

Um comentário:

Nelson Cunha disse...

Paulo, sua memória privilegiada é capaz de surpreender seus colegas com essa traumática lembrança que é o vestibular. Quantos detalhes! Hoje a competição é ainda mais selvagem nas Federais. Vivi novamente essa fase da vida com meus filhos e agora com netos.
Antes a aprovação era uma porta aberta para o emprego. Hoje é apenas um pequeno degrau. O mercado está saturado de diplomados. Até os competentes encontram dificuldade para se libertar da casa dos pais. Acho que a nossa geração foi a última a saborear o gosto da independencia financeira.
Vem aí a IA ( inteligencia artificial) que vai colocar uma pá de cal em muitas profissões. Como será o futuro do trabalho intelectual? Ando pessimista.