O TROTE

"A primeira aula não se dá e à última não se assiste."
No primeiro dia de aula, assim como fizeram muitos calouros da instituição, eu me apresentei com o cabelo já cortado a zero. Sabendo que teria o cabelo tosquiado, da pior forma possível, pelos alunos veteranos da Faculdade de Medicina da UFC.
O trote acontecia no "Território Livre das Mangueiras", no campus de Porangabussu. Não era violento, mas receei estar marcado para o pior dos trotes. Na qualidade de aluno do cursinho prevestibular do Diretório Acadêmico XII de Maio, no ano anterior eu tinha sido muito observado pelos veteranos enquanto transitava nas dependências da Faculdade.
Da programação do trote constavam: beber óleo de rícino, ser tosquiado (com "caminhos de rato" sendo feitos no couro cabeludo), receber pinturas corporais, fingir-se de estátua, fazer agachados etc.
O veterano Manassés, que fora meu professor no cursinho do DA XII de Maio, me pegou para Cristo. Ordenando-me que eu fizesse uns agachamentos, enquanto ele contava até dez. E, quando eu estava prestes a findar uma série de agachamentos, ele passava a contar em decimal.
De qualquer maneira, foi a parte mais agradável do trote e eu, que não era besta. procurei não me distanciar dele.
Em 1966, o trote era leve. Não tinha comparação com o que meu pai levou, em 1943, ao ingressar na Faculdade de Direito. Na ocasião, os calouros de nossa Salamanca saíram em uma passeata com faixas pelas ruas de Fortaleza. Uma delas, com uma exortação à participação do Brasil na II Guerra Mundial, na qual se lia: "Casar para evitar convocação é covardia!".
Nada contra a cobra ir fumar na Itália. Não fosse o meu genitor ter sido obrigado a desfilar vestido de "noiva", como ficou registrado em uma fotografia da época.
Voltando ao trote no campus de Porangabussu. Por ter umas gordurinhas a mais, um de nossos colegas foi posto em plano superior e na posição de lótus para receber as honrarias de Buda dos demais "trotandos".
No final das brincadeiras, o "bicho" (tratamento carinhoso dado ao calouro) comprava uma boina branca com a inscrição MEDICINA e os convites para uma calourada que dava direito a apreciar os veteranos se divertindo.
No ano seguinte, pude executar meu plano de vingança. Nessa nova edição do trote, por desfrutar da prerrogativa de ser um aluno veterano, eu aproveitei para tirar um amigo do cercadinho.
Aí fomos comemorar tomando umas cervejas no Dozinho.

3 comentários:

Nelson Cunha disse...

Passei pelo mesmo calvário de humilhações e outras estultícias dos veteranos aí incluído espojarme na lama como um porco - Havia chovido no dia anterior. Não sei se essa modalidade de boas vindas perdura até hoje. Alguem me contou que foi importado de Portugal-Coimbra. Quando estive ali perguntei se essa tolice era invenção portuguesa. Disseram que alunos formados e em despedida do curso e da cidade saiam em grupo pelas ruas destruindo placas, jardins, rompendo janelas e outras bestialidades.Há que se diverte com isso. Não vejo a menor graça.

Paulo Gurgel disse...

Daí a minha vingança benigna no ano seguinte. Quem salva um calouro, salva a calourada (Talmud, modificado)

Paulo Gurgel disse...

Publicado hoje no Blog do Marcelo Gurgel.
http://blogdomarcelogurgel.blogspot.com/2022/09/o-trote-medicina-da-ufc-1966.html