DO VELÓRIO AO SONHO DE CIPIÃO

O Editorial do Fato Médico, de 06/04/2008, brindou seus muitos leitores com o texto da lavra do Prof. Dalgimar Beserra de Menezes, um dos mais pujantes intelectuais cearenses, possuidor de vasto cabedal de conhecimentos, e fecundo em obras de escol, científicas e literárias, emoldurando um curriculum vitae com mais de dois mil títulos, muitos deles de substancial valor técnico, espelhando, ademais, uma fértil existência.
O editorialista, ao ensejo da homenagem que lhe foi rendida no livro “Em Louvor: aos homens e às suas idéias”, tornou público o desejo de não ter necrológio, quando do seu passamento, e que, em sua viagem derradeira, a cerimônia fosse estritamente familiar. Deixou também o aviso de que não quer a presença, minha e de tantos outros, em seu enterro, expressando a vontade de exarar, em cartório, o elenco dos excluídos.
Embora entendendo o desejo do conselheiro Menezes, certamente será bem difícil conter a avalanche de seus amigos, colegas, ex-alunos e admiradores, que hão de pranteá-lo, à revelia de seu bizarro desiderato. Em respeito à sua vontade, alguns podem até se poupar de carpir o seu corpo mignon, durante as exéquias; contudo, por certo, as honrarias póstumas se sucederão em eventos que porão, lado a lado, pessoas de diferentes matizes ideológicos, desde a esquerda que não se endireita à direita sinistra, o que complementará as merecidas homenagens prestadas em vida.
Para o Prof. Dalgimar, fiz prefácio de livro e peças laudatórias e dele recebi igual tratamento, ainda que com manifesta assimetria, à conta do seu superior e bem melhor atributo literário; porém, seguramente, mesmo que me submeta ao ditame de sua obscura intenção, contendo a pena e a criação literária, os textos já publicados podem dar suporte a que terceiros escrevam necrológios sobre o ilustre filho da Gangorra.
Não somos imortais, e nem os acadêmicos o são, mas não se morre de todo, quando se permanece vivo no coração de alguém, seja ou não um descendente, pois em Santo Agostinho colhe-se: “A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês continuarei sendo. ...”. Em que pese não ter vexame em partir primeiro, condição em que a governabilidade humana é algo limitada, ratifico o quão constrangedor seria para mim, assumir o encargo de velar um amigo tão querido quanto o preclaro colega Menezes.
Com efeito, em “O Sonho de Cipião”, (Livro VI da República), datado de 54 a.C., Cícero (106-43 a.C.), o notável orador romano, prenuncia a imortalidade da alma ao profetizar: “Sim, esforçai-vos e relembrai isso: que o que é mortal não sois vós, mas vosso corpo e, certamente, vós não sois aquele que essa atual aparência manifesta, mas a alma de cada um é aquele cada um, não essa figura que se pode mostrar com o dedo.”

Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico Epidemiologista

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