MINHA SUPERFATURADA BICICLETA

O meu sonho infantil de possuir uma bicicleta andava cada vez mais difícil de virar realidade. Não era do feitio do velho - nem, talvez, suas posses pudessem permitir a generosidade - dar valiosos presentes a seus filhos. Além disso, ainda estava longe de aparecer a estratégia publicitária que ensinava a gurizada a colocar, nos vários pontos da casa, os lembretes de "papai, não esqueça a minha Caloi".
Por isso, eu já havia fechado questão com os meus botões. Sobre a perspectiva de não sair coelho daquele mato. Se eu quisesse andar numa bicicleta, eu tinha mesmo de fazer o seguinte: alugá-la a hora.
Bicicleta de locação era sempre muito velha, de carregação. Lembro-me de que quando alguém saía à rua, montado numa delas, ouvia logo maldosos comentários. Do tipo "basta chover que os caranguejos aparecem". Mas foi nesses "caranguejos" que eu aprendi a dar minhas pedaladas, a tirar as mãos do guidão e a fazer outras proezas.
Aí pelos anos 60, cansei de pegar carona na bicicleta de Paulo Roberto. O "Brilhantina", como era o meu amigo apelidado (em virtude do excesso de "Glostora" na vasta cabeleira), não me faltava com a carona, ao término das aulas diárias no Colégio Cearense do Sagrado Coração. Antes do meio-dia, lá vínhamos os dois em desabalada carreira pela Duque de Caxias - numa só bicicleta! Com o perigoso detalhe de que a bicicleta de Paulo Roberto não tinha freio. Por descaso ou por busca de emoção barata, até hoje não sei bem. Sei apenas que, para freá-la, o colega encostava a sola do sapato no pneu dianteiro da bicicleta e o pressionava "de com força".
Um dia, compramos, de parceria, uma velha bicicleta que estava à venda por dois mil cruzeiros. Mil meu com mil dele (sei do cacófato). Gastamos, a seguir, ainda alguma grana para restaurá-la porque a idéia era revendê-la por um preço maior. E foi um grande negócio. Pois a "magrinha" acabou sendo vendida por dois mil e quinhentos de entrada, mais três prestações de igual valor. Embora Paulo Roberto não me tenha repassado a parte que me cabia na última prestação. Apenas me comunicou que resolvera dispensar o comprador de fazer o último pagamento. E uma crise de consciência pelo excesso de lucros foi o motivo alegado.
Em meio aos acertos de contas com a transação, recebi do meu sócio um blusão vermelho com gola e punhos pretos. Muito apropriado para dirigir lambreta. Mas foi vestido com ele que eu enfrentei o calor senegalesco dos estúdios da televisão local em um programa de perguntas patrocinado pelo Alumínio Ironte, ao qual fui para responder sobre Geografia. E o candidato aqui estava bem preparado para responder sobre os afluentes da margem direita do Rio Amazonas, as cidades da Finlândia, a altura do Monte K2, porém o que fez comigo o Augusto Borges. Mandou-me uma pergunta capciosa englobando alguns conceitos geográficos. E, não podendo ser socorrido pelo decoreba, eu "dancei" no ato.
Este insucesso, porém, não me impediu de circular, no dia seguinte, pelas ruas centrais de Fortaleza. Com o blusão a ajudar, junto à memória das pessoas, na operação de rescaldo dos meus quinze minutos de fama na televisão.
No Sítio Catolé, em Senador Pompeu, onde eu costumava passar as férias, existia - trancada num quarto a cadeado - uma bicicleta de fabricação estrangeira. Eu é que não me atrevia a tomá-la emprestada para ir à cidade. Ela pertencia a Tio Raimundinho, um solteirão cheio de manias e ciumento de seus objetos pessoais. E, para o meu tio, aquela bicicleta era "a joia principal da Coroa". Corria inclusive a história de que ele, quando ia à cidade, não a usava em todo o trajeto. Qualquer aclivezinho besta, ele já desmontava da bicicleta e a empurrava. E não era por falta de condicionamento físico, não. Era para não forçar a catraca.

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