UM VIOLÃO NO SERTÃO CENTRAL

Já havia passado pela experiência de aprender a tocar violão pelo método sem professor. Com o resultado tendo sido um retumbante fracasso por repetir-se como farsa o que me aconteceu à época do violino.
Como disse Einstein, seria insano esperar resultados diferentes fazendo as coisas do mesmo jeito.
Sentado na escadaria da igreja de Nossa Senhora das Dores, em Otávio Bonfim, uma noite eu tive o privilégio de assistir a Cláudio Costa dar um show de violão. Claudio morava no Parque Araxá, vinha se dedicando ao violão há pouco tempo e, meu deus, já tocava aquilo tudo!
Quanto era pouco tempo? Uns dois anos, talvez. Claudio tinha de ser o meu professor de violão. E contratei-o imediatamente.
Com um violão gentilmente cedido por Diana, minha colega de turma na Faculdade de Medicina, e contando para a novíssima tentativa com a orientação de um competente professor, eu não iria reincidir no erro.
As aulas eram dadas à sombra das fruteiras no quintal da Vovó Almerinda, com os pagamentos sendo efetuados no final de cada aula. Eu escolhia a canção que iria aprender. Claudio me passava o acompanhamento tirado de ouvido. E, como dever de quintal, transcrevia em meu caderno a letra da canção com as cifras dos acordes sobrepostas. No rodapé, acrescentava os diagramas das posições no braço no violão.
Com as férias chegando, acertei com Claudio um turno inteiro de aulas. Na linguagem atual dos cursinhos isso seria chamado de "intensivão". Era minha intenção dispor de um bom número de músicas para treinar no sossego do Sítio Catolé.
Ao tomar o trem da RVC (Rapariga Velha Cansada), em Otávio Bonfim, com destino a Senador Pompeu, eu levava o "meu" violão, um bloco de rascunhos com "Perfídia", "A noite do meu bem", "A Rita" e a italianíssima "Come prima". Além de um caderno de solos musicais do Prof. João Lima que um dos seus alunos me emprestou sem o conhecimento do tutor. Tudo isso eu levava no meu matulão.
No Sítio Catolé, as férias transcorriam às mil maravilhas. Com banhos no açude, frutas comidas ao pé, contemplação da passarinhada e incursões periódicas à sede do município, onde ia me esbaldar no clube da AABB.
Certa manhã, apareceram dois visitantes no Catolé. Um pegou o violão, começou a solar a música "Juazeiro", do Luiz Gonzaga, enquanto o outro cantava. Que coisa mais esquisita! O violonista, que não sabia fazer um acorde, acompanhava o cantor por meio do solo. No final do encontro, retiraram-se estupefatos com o que eu e o meu violão da cidade já podíamos fazer. Não é gabolice: uma revolução musical deve ter acontecido depois em suas vidas.
Na ociosidade do Catolé, minhas fronteiras musicais se alargaram consideravelmente. Aventurei-me inclusive a criar, sabe-se lá como, o acompanhamento de uma música. Tendo escolhido para essa empreitada um samba-canção de Noel Rosa.
Ao retornar para Fortaleza, mostrei o meu "arranjo" para Claudio: "Último desejo" em Ré Maior. Claudio achou que eu tinha contrariado todos os cânones da música e sugeriu que eu refizesse a harmonia em Mi Menor. O problema, Paulo, não está no tom. O que é menor não pode ser maior e vice-versa.
Depois disso, não tive mais aulas com Claudio. No sentido formal, não. Mas, na verdade, tive muitíssimas aulas com ele em mesas de bares, serestas, festivais. E a oportunidade de um dia ensinar ao mestre a complexa harmonização que existe em "Samba de uma nota só". Perguntem a ele que ele confirma.
A propósito:
Quando se apagarem as luzes do meu cérebro, denegando-me o acesso a todas as canções aprendidas, a que persistirá por mais tempo será certamente A Rita, do Chico Buarque. Em edição bilíngue (português e italiano). só para desagravar o que as Parcas estiverem a fazer comigo. Assim espero.
Mensagens recebidas
Paulo, bom dia.
Desde muito tempo, que o admiro como cronista de escol. Embora mais "antigo", também vivi minha adolescência nos arredores da Igreja de Nossa Senhora das Dores, mormente aos domingos, quando indicado pelo Fujita (será que é com "G"?), meu colega de turma no Lyceu, defendi as cores do "nosso" MONTESE ( criado pelo inesquecível Frei Theodoro).
Guardo vivas recordações do Edmar (creio que seu tio), um dos nossos craques, Nelsinho, Zé Augusto, Coringa... e tantos outros. Estimaria muito vê-lo, com seu irmão Marcelo, fazendo parte e enriquecendo a ACEMES.
Também gosto muito de um violão, embora não saiba dedilhá-lo, pois se assim o fizesse, possivelmente seria um boêmio; mas, cantei muitas serenatas.
Um grande e fraternal abraço.
José Maria Chaves, por e-mail
Parabéns, Paulo!
Belo texto! Gosto de resgate histórico!
A Rita persistindo... Também pudera, você deve ter tocado com muito prazer.
Chico é Chico.
Abraço.
Ana Margarida Rosemberg, por e-mail

Um comentário:

SOBRAMES-CE disse...

Sua impecável crônica me fez viajar no tempo. Parabéns! A Rita, certamente, não morrerá nunca nas cordas de seu violão. É música de Chico Buarque e, por isso, vc aprendeu pra valer e com prazer.
Abraço
ana margarida.