OS PISTOLEIROS DE IGARÓI

"...Enquanto os homens
Exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais..."
(Caetano Veloso)

Você sabe onde fica a vila de Igarói? Não? Não se desespere, pouca gente sabe ou já ouviu falar desse lugar. A vila de Igarói é um pequeno e distante vilarejo cravado no sertão central do Ceará, no município de Orós. Fica longe, muito longe de Fortaleza. Pequeno vilarejo é até elogio. A vila é um amontoado de pequenas casas, uma igrejinha e alguns estabelecimentos comerciais, nada mais. São poucas ruas e não possui nenhum atrativo ou ponto turístico que explique como surgiu e se desenvolveu. Desenvolveu também é força de expressão, pois o progresso ainda passa longe de Igarói. Sua única referência e razão de existência, acredito, é a proximidade do açude de Orós, esse sim, bem mais conhecido. Também fica próxima da cidade de Orós, sede do município e da cidade de Icó. Pois é lá nessa cidadezinha perdida no meio do nada que residem os dois personagens centrais dessa história. Vivem por lá dois dos pistoleiros mais temidos e destemidos do estado do Ceará: Justino e Catolé. Olhando de relance ninguém dá nada pelos dois. São baixinhos, muito magros, quase raquíticos e de fala mansa e pausada. Roupas comuns, de chinelos a maior parte do tempo, mas sempre, sempre com os seus indefectíveis e inseparáveis chapéus. Creio que seja alguma marca registrada dos pistoleiros do nosso interior. Pistoleiro que se preze tem que andar de chapéu. Chapéu “quebrado de lado” e quase cobrindo os olhos. Além, claro, do seu fiel instrumento de trabalho, o indefectível e reluzente revolver 38 na cintura e que se sobressai na camisa.
Caminhando tranquilamente pelas vielas da vila ou bebendo uma cachaça no Bar da Loura, ninguém jamais vai imaginar que aqueles dois são frios e cruéis matadores de aluguel. Me corrijo, foram pistoleiros, não são mais. Pelo menos é o que afirmam. Não juram porque pistoleiro somente jura cumprir o acordado. Contratou o serviço, a vítima está jurada. Jura feita, serviço executado. Que Deus se encarrega da alma do infeliz. Nada pessoal, apenas e exclusivamente o relacionamento profissional. Estranho, injustificável e inadmissível para nós, ou para qualquer pessoa, digamos, normal. Mas para esses “profissionais” é o seu trabalho e meio de vida. Soa estranho ganhar a vida tirando vidas, mas é a dura e cruel realidade dessas pessoas. Sina, destino ou maldição? Ou seria falta de trabalho e de oportunidade? Ou culpa da imensa injustiça social ainda reinante no nosso sertão miserável e faminto. Não vou e não me cabe julgar. Apenas vou relatar algumas histórias e fatos, ou lendas, ocorridos com os mesmos.
Contam que certa feita um grande fazendeiro contratou o pistoleiro Justino para “dar fim” a um fazendeiro vizinho que tinha invadido suas terras. Chamou Justino, explicou como queria o serviço, acertou o preço e forneceu duas fotos do desafeto. Serviço concluído chegou Justino para receber o pagamento:
- Pronto Doutor, os homens num vão mais incomodar. Os dois agora só vão ver as terras do senhor nos olhos.
Espantado o mandante comenta:
- Como os dois? Era apenas um, aquele safado do Capenga!
Justino responde calmamente:
- Não Doutor, o senhor me deu dois retratos...
O mandante argumenta, gritando:
- Mas eram do mesmo sujeito. Só que era uma foto de frente e outra de perfil.
Justino tira o chapéu, coça a cabeça e argumenta:
- Vixe Maria! E agora? O serviço ta feito e não tem volta. Deixa pra lá Doutor, só vou cobrar por um mesmo.
Outra do Justino. Devido uma doença venérea, a velha gonorreia, ele estava com dificuldade de urinar e sentido muitas dores. Foi ao médico em Icó para uma consulta. O médico era urologista e teve a infeliz ideia de sugerir ao pistoleiro Justino fazer primeiramente um exame de próstata. Quando falou com o paciente sobre o exame o pobre médico não sabia da fama e muito menos da sua profissão. Explicação dada ao tentar se aproximar, Justino se afasta abruptamente, coça o cabo do revolver 38 com o cotovelo, o qual se destacava volumosamente sob a camisa quase levantada e fala calmamente:
- Ta pensando o que, seu doutorzinho fio de uma égua? Que eu sou baitola que nem vós micê? Se prepare para morrer!
Justino saca a arma e aponta para o apavorado doutor. O jovem médico, mais branco do que o jaleco, cai de joelhos e de mãos postas pede por tudo para ser poupado e começa a chorar. Aos prantos tenta explicar que tudo era um lamentável engano, que Justino tinha entendido errado e que a culpa era da enfermeira, a qual deu as informações erradas (a coitada nem estava sabendo do assunto). Sorte do médico que nesse dia Justino estava em paz com a vida e resolveu perdoar o “doutorzinho afeminado”. O fato é que terminou o médico dispensando a cobrança da consulta e ainda doando toda medicação para Justino. Sem falar que também mandou o motorista da ambulância levar o pistoleiro e deixá-lo na porta de sua casa lá em Igarói.
A outra história fala do pistoleiro Catolé, o mais perverso dos dois (se é que isso é possível) e a origem do seu apelido. Dizem que se nome de batismo é Epifânio Nonato, mas convenhamos isso não é nome de pistoleiro. Apenas é conhecido pelo apelido de Catolé. Contam que ele foi contratado para executar um comerciante em Jaguaribe-CE. Era uma rixa de família e o mandante parente da vítima, o qual era conhecido na cidade por sua força e valentia. Acontece que Catolé quando chegou à cidade descobriu que o seu fiel 38 estava descarregado e não tinha onde comprar as balas sem levantar suspeitas. Para fazer o serviço teve que lançar mão da velha espingarda. Uma curiosidade: no interior do Ceará se utilizar a expressão “bater catolé” quando uma arma falha por problemas com a munição. Foi o que aconteceu. Na emboscada para matar o comerciante a munição estava fria, a espingarda “bateu catolé” e a vítima reagiu. Sacou da peixeira e partiu para cima de Catolé que teve de sacar do punhal para se defender. Terminou executando o comerciante com um profundo golpe de punhal no coração. A briga lhe rendeu a apelido e também uma grande cicatriz no rosto e várias outras nos braços. Por conta dos cortes perdeu muito sangue e para completar perdeu também o dinheiro do serviço. O mandante se recusou a pagar porque o crime chamou muita atenção e também pela forma perversa como o parente foi executado. Morrer com uma punhalada de coração é muito triste e cruel, nas palavras do mandante. O serviço desastrado teve ainda desdobramento para Catolé. Não se sabe se por remorso ou por medo de ser descoberto devido à repercussão, mas o mandante contratou um outro pistoleiro para matar Catolé, o qual ainda se recuperava das feridas do “acidente de trabalho”. Foi contratado um pistoleiro da Zorra, distrito de Mombaça e local famoso pela quantidade e facilidade de contratar esse tipo de profissional. Engraçado, mas quando se contrata um pistoleiro para matar outro que por algum motivo tenha falhado ou deixado pistas no serviço se diz que o mandante contratou “um seguro”. Os infames “seguro” são considerados traidores da profissão e odiados por motivos óbvios. Não se sabe como, mas Catolé foi informado do “seguro” e descobriu a tempo que o desafeto estava na vila de Igarói no seu encalço. Era finalzinho da tarde, Catolé estava sentado na porta da sua casa com a mulher quando o pistoleiro contratado chegou para executar o serviço. Cumprimentou Catolé, se certificou que era a pessoa certa e pediu um copo d’água. Quando a mulher entrou para pegar a água o pistoleiro tentou sacar a arma, mas Catolé foi mais rápido. Sacou primeiro e descarregou o 38 no peito do desgraçado. O “seguro” ainda agonizava quando Catolé entrou em casa, pegou um facão e decepou as mãos do traidor. Faz parte do “código de honra”, traidor da profissão tem que morrer e ser enterrado sem as mãos, de forma que o cadáver do infeliz foi para a cova mutilado.
Já estive diversas vezes na vila de Igarói e tive a oportunidade de conhecer pessoalmente esses personagens, em especial o sereno Catolé. Certa feita, conversando com Catolé no Bar da Loura enquanto tomávamos umas cervejas, perguntei que fim ele tinha dado às mãos do “seguro”. Ele apenas sorriu, mostrando seu brilhante dente de ouro, balançou a cabeça negativamente e rebateu a história. Falou baixinho e sem muita firmeza:
- Isso é história desse povo, Doutor. Num teve nada disso, não.
Nesse dia ele sai do bar meio cambaleante devido às cachaças que já tinha bebido antes das cervejas. Ao se levantar, ajeita o fiel 38 sob a camisa com o cotovelo, coloca o chapéu, sai caminhando lentamente e some nas vielas de Igarói. Vai para seu casebre almoçar seu baião-de-dois com galinha caipira e depois dormir tranquilamente e sem nenhum remorso. Em paz com a família e, acredite, sem nenhum pesadelo. Coisa do meu sertão. Coisas do Ceará.
Carlos José Holanda Gurgel

3 comentários:

Anônimo disse...

Puxa, o texto é muito bem escrito e Igarói é assim mesmo, atraso é eufemismo (...)
Mas você está terrivelmente equivocado, eu moro aqui nas proximidades e desconheço esses pistoleiros: na realidade, você deve ter ouvido falar da família justino. O lugar violento em questão é o catolé dos justinos, que tem como referência a pequena vila de igarói. O catolé dos justinos ainda hoje tem histórias macabras e todo mundo evita ir pra lá. Bom você contar a história, mas sua fonte foi um pouco imprecisa. Espero não ter frustrado sua publicacação, mas percebi logo de cara que havia uma mistura de informaçãoes.

Paulo Gurgel disse...

Caro leitor,
Comunicarei o recebimento deste comentário ao autor do texto.

Anônimo disse...

é amigo essa é mais uma daquelas histórias que segundo a vovó eram narradas nas grandes desbulhas de feijão da época como forma de entreter os amigos e enriquecer nosso folclore.